Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

segunda-feira, 10 de outubro de 2005

O Cavaleiro e o Dragão
Enfim, com quase um ano de atraso, publico a décima parte da fábula na íntegra. Se você ainda não conhece a história do Cavaleiro e o Dragão,leia a primeira, a segunda, a terceira, a quarta, a quinta, a sexta parte, os fragmentos da sétima parte, a oitava e a nona partes...


O sol espreitou por entre as pedras do templo, despertando Amarath e o dragão. Era um sol avermelhado, pouco amistoso, que brilhava através das nuvens de fumaça. Amarath levantou-se rápido e foi se lavar no rio, deixando para trás o dragão que parecia apenas fitar o sol e as nuvens e escutar o vento. Tinha um sentimento de urgência que não sabia explicar e corria desabalado pelo urzal rumo ao rio. Sentia no ar um cheiro que fazia sua cabeça girar. A água estava fria demais, parecia inamistosa. Era um dia muito estranho.

No caminho de volta, caminhou devagar. Por algum motivo sentia seu estômago ainda vazio revolvendo-se a cada passo. Podia, desde o pé da colina, ver o corpo do dragão recortado contra o céu iluminado que agora quase o ofuscava. Não podia ver sua face, e talvez ainda não soubesse interpretá-la, mas sentia que a criatura o fitava com olhar grave. Ao chegar ao topo da colina, fitaram-se, de fato, em silêncio, por várias batidas do coração pesado de Amarath.

O jovem cavaleiro quebrou o silêncio.
- "o que está acontecendo?"

O silêncio do dragão foi resposta o bastante. Ele sabia, em seu íntimo, as palavras raspadas que a criatura proferiria, antes mesmo que ele as proferisse.

- "O dia nasceu."
- "É. Eu sei disso..." Amarath começou a responder, sentindo ainda a atmosfera estranha do dia retorcendo seu interior.
- "Escute!" Rugiu o dragão. Amarath pulou para trás, quase escorregando colina abaixo, e escutou...
- "Hoje você vai se encontrar com a mulher lobo..."
o coração de Amarath pulou uma batida.
- "...e você deve matá-la."

Por um segundo o jovem aprendiz de cavaleiro não pôde respirar. As palavras o atingiram como um golpe, desorientando-o, tirando-o de ação. Ele não conseguia sequer falar. A pergunta morreu eu seus lábios, antes que o dragão continuasse a falar.

- "O terceiro teste é muito simples. Consiste em matar uma fera que aflija uma cidade ou vila, demonstrando coragem e noção de sua função enquanto guerreiro de seu povo. É um teste difícil, e assim deve ser."
- "Mas... mas, por que!?" Amarath falava, quase sem voz, olhos fitos no dragão como que implorando para que aquilo não fosse a verdade...
- "A mulher lobo entrou em uma vila há duas noites. Havia gado no pasto, mas ela não quis o gado. Havia homens que caminham na noite, cegos, como são os homens, e ela não os quis. Entrou em uma casa, não qualquer casa, mas uma casa em especial, em uma vila que não era qualquer vila, era uma vila especial. Nesta casa ela devorou uma criança."
- "Porque?!"
- "Pergunte a ela, se ao encontrar-se com ela você reconhecer nela aquela que você conheceu. Não se preocupe, não estarei com você para deixá-los pouco à vontade."
- "Como assim? Como assim reconhecer nela aquela que conheci...!?" Amarath não conseguia entender. Ele não conseguia aceitar. Dentro de si sentia as entranhas expressando também sua revolta.
- "As pessoas nem sempre são iguais em todos os mundos... Mas chega de perguntas. Vá! Você tem um dia difícil pela frente." O dragão se virou, como se a espreitar o vento, procurando sua rota de vôo.
- "Você não tem sentimentos!?"
O dragão não se voltou para Amarath. Permanecia olhando para o céu cheio de nuvens e para a fumaça no horizonte. Mesmo assim, ele respondeu:
- "Sim, eu tenho. Mas estes são os seus sentimentos. Não vou me enredar neles. Eu apenas estou apresentando-lhe seu teste. Você pode, se quiser, abandonar o caminho do cavaleiro e se juntar a ela. Mas desconfio que você poderia terminar sendo o jantar de sua amada."
Amarath podia imaginar que o dragão mostrava os dentes ao vento, no que deveria ser um sorriso.
- "Você é cruel!" disse o jovem, quase gritando.
- "Eu sou um dragão. E você ainda tem muito a aprender sobre o que é a crueldade, menino. Vá. Aja como o homem que você pretende ser." a fera verde alongava as asas, falava quase preguiçosamente.
- "Você não sabe o que é amor!? Você não conhece estes sentimentos? Por quê você me pede isso?" agora Amarath gritava.
- "Quando você os conhecer, conte-me sobre eles." O dragão voltou sua cabeça para o aprendiz de cavaleiro, mantendo o corpo voltado para o templo, e aproximou-a. Seus olhos buscavam os de Amarath.

Ele sabia que não adiantaria discutir. Em seu coração apertado, ele sabia que seu teste havia começado e que tinha agora uma escolha pela frente. Não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Respirava com dificuldade, pensava com dificuldade. Mas no fundo sabia que não fora preparado por metade de sua vida para ser um cavaleiro de dragão para desistir agora. No fundo sabia que, mesmo sem entender, precisava prosseguir. Este não era o momento para tomar todas as decisões. Por fim, com um suspiro, mesmo sem saber ao certo o que dizia, ele assentiu:

- "Eu vou." palavras pesadas, cortantes, sussurradas...
- "Siga naquela direção, senhor cavaleiro, e cuidado para não se perder. E apresse-se." o dragão apontou seu grande rabo na direção das colunas de fumaça que formavam-se a alguma distância no leste, depois voltou a deixá-lo cair preguiçosamente sobre a relva e virou-se novamente para a encosta. Abriu as asas como se fosse levantar vôo...
- "Espere! Eu tenho perguntas..."
- "Todos tem perguntas."
O dragão voltou a fitar Amarath como se estivesse impaciente. Mas a impaciência parecia claramente uma afetada atuação. Amarath recuperou urgentemente o fôlego e indagou:
- "Como espera que eu...?" não consegiu procunciar a palavra matar... "Eu não tenho uma espada, nem sei exatamente qual é a vila... e quem era a criança?"
- "Se precisar de uma espada, arranje uma. Você reconhecerá a vila. Agora vá, matador de mulheres lobo."

Amarath sentia-se ferido na alma e muito só quando voltou-se para o leste para caminhar. Após alguns passos voltou-se na esperança de fazer mais uma pergunta, mas temendo que o dragão já tivesse ido embora. Ele ainda estava lá, observando-o caminhar.

- "E se eu fracassar?"
- "Não pense na derrota quando for lutar, nem pense na morte quando for matar... ou morrer."
Amarath decidiu não pensar nas palavras do dragão. Não ainda. Apenas fez a sua última pergunta.
- "Por quê eu?"
- "Porque foi você que a trouxe, e ela está procurando por você..."

O coração do jovem aprendiz de cavaleiro voltou a disparar, sua mente cheia de dúvidas, suas faces em chamas olhando para o enorme dragão que abria as asas e ganhava os céus.

Pode discernir ainda, trazidas pelo vento, as últimas palavras do dragão:
"...você entenderá quando encontrar a vila, e a loba."

Perdido demais para fazer qualquer outra coisa, Amarath apenas caminhou...


(fim da décima parte)



esta fábula continua...

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