Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

sábado, 16 de outubro de 2004

O Cavaleiro e o Dragão (sexta parte)
Uma das fábulas internas do Duende

O Cavaleiro e o Dragão é uma fábula publicada em partes.
aqui estão os links da primeira, segunda, terceira, quarta e quinta partes.
acredite, fábulas fazem mais sentido quando lidas na ordem correta. :)




Marcos quase não se lembrava que tinha pais na maior parte do tempo. Mas quando chegou em casa transtornado naquele dia, confuso e com os olhos injetados de angústia, estes se insinuaram desajeitadamente em seu momento. Percebendo inúteis as tentativas de conversa, insistiram para que ele tomasse um calmante, e depois mais um. Vencido pelo cansaço ele tomou aquilo que lhe foi dado, como uma fera domada, cansado demais para continuar se debatendo.

No dia seguinte, também sombrio, mas de um modo diferente com um céu cinzento uniforme, a mãe de Marcos atrasou sua ida ao trabalho para levá-lo a um médico. Marcos estava confuso demais para lutar. Mal dormira à noite, e quando o fizera foi sob efeito dos calmantes. Tivera uma noite sem sonhos e estava agora confuso demais até para se questionar sobre qualquer fronteira entre a realidade e o sonho. Sob efeito de calmantes o mundo é uma massa indistinta de objetos de pano com cores desbotadas. Entre todas as cores desbotadas daquela manhã, predominara o branco das paredes do hospital onde um médico aconselhou uma mãe aflita a medicar o filho. No caminho de volta para casa discutiu com a mãe, afirmando que se recusaria a tomar qualquer remédio. Não sabia mais ao certo por quê, mas algo o dizia que as pequenas cápsulas vermelhas seriam um veneno que destruiria muito mais do que qualquer médico poderia conceber dentro dele.

Quando o carro parou e sua mãe saiu do carro, ainda gritando a respeito do remédio e da falta de noção de mundo de Marcos, algo novamente despertou dentro dele. Algo livre, selvagem e urgente. Desligando-se das palavras de sua mãe e de tudo mais, concentrou-se apenas em inspirar o ar profunda e lentamente... e em começar a correr. Os gritos de sua mãe atrás dele, parada frente ao portão aberto da casa, ficaram cada vez mais distantes, engolidos pelo zunido do vento e o prazer de correr por entre as árvores e as pessoas que se admiravam e se voltavam para ele pelas ruas. Assim Marcos correu, por uma quantidade tempo e em uma direção que ele não saberia precisar. E por fim parou em frente a uma pequena loja de presentes, sem saber também o motivo. Do interior da loja um homem pequeno com o nariz muito longo e adunco e cabelos negros curtos e ensebados sorria para ele com os dentes amarelos. Marcos caminhou para o interior da loja, sem se aperceber de que o cheiro de cinzas que sentia vinha de seu próprio suor.

- "Eu sei o que você é.", disse o homem ainda mantendo o sorriso estranho.
- "E o que eu sou?" perguntou um Marcos surpreso por não ter a respiração sequer alterada depois de tanto correr.
- "Isso você vai descobrir. Você sabe ao menos o que faz aqui?"
- "Eu vim correndo e..."
- "Não, não e não. Você deveria ser mais inteligente. Sim, sim, sim, deveria. Eu perguntei se você sabe o que está fazendo neste mundo." Interrompeu o homem pequeno vestido em um casaco estranho, aparentemente feito para uma mulher, coberto com penas pretas e brilhantes.
- "Como assim?"
- "Eu nunca pensei que encontrasse alguém como você que fosse menos inteligente do que eu. Não, não, não. E a surpresa não foi tão boa assim..." a voz do homem estranho começava a irritar Marcos.
- "Do que diabos você está falando!? Eu estou tendo um dia de merda e você fica me chamando de estúpido e dizendo coisas sem sentido! Eu vou..."
- "Não, não, não... não faça isso!" interrompeu o homenzinho, com urgência, mas mantendo um sorriso sarcástico de satisfação no rosto.
Marcos não sabia o que estava fazendo, e viu-se surpreso ao avançar sobre o homem e segurá-lo pela gola do estranho casaco de penas. Ficou ainda mais surpreso ao levantar o homem facilmente do chão... como se ele fosse ainda mais leve do que aparentava. Por um segundo os olhares dos dois se cruzaram e Marcos se assustou com o negrume dos olhos do pequeno homem. Ao soltar o homem ficou surpreso ao perceber que o riso havia sumido da face deste, substituído por um olhar de terror enquanto este virava seu corpo miúdo e corria por sobre os objetos empilhados, entulhados, da loja. Parou por fim, depois de dar dois saltos muito ágeis, no topo de uma estante que dividia o ambiente da loja em dois.
- "Tenha calma!" disse o homem, que ao gritar revelou ter uma voz esganiçada e aguda.
- "Que merda é essa que está acontecendo? O que é que você diz que eu sou, e o quê é você!?", disse Marcos. Sua voz raspava na garganta e tomava um tom entre o demasiado grave e o patético.
- "Eu vou responder uma das suas perguntas e você irá embora... sim sim sim. As coisas não são geralmente o que parecem, mas no fundo a gente sabe o que elas são. Entenda e acredite você ou não, é sempre melhor acreditar no que você sente do que naquilo que você vê."

Marcos ia tentar perguntar mais alguma coisa, mas o homenzinho desapareceu por detrás da estante com um salto ágil, pouco antes de sair por uma porta cuja vista a estante bloqueava. Depois de respirar fundo, Marcos sentiu então algo que não fazia sentido, mas era o que sentia. Marcos sentiu que a única coisa que devia fazer agora era encontrar Selina. Quando Marcos deixou a loja estava ocupado demais para olhar para o calendário com desenhos de pássaros europeus. Se o tivesse feito perceberia que esta noite seria a primeira noite da lua cheia...

(Fim da sexta parte)


(publicado em homenagem à Nath, minha fiel conselheira doce e histérica).

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