Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

sábado, 2 de outubro de 2004

O Cavaleiro e o Dragão (qUARTA pARTE)
Uma das fábulas internas do Duende

O Cavaleiro e o Dragão é uma fábula publicada em partes.
leia a primeira parte | leia a segunda parte | leia a terceira parte



Marcos não se lembrava que a vida podia ser tão estranha e ao mesmo tempo entediante. Os dias passavam como uma paisagem desbotada pelo sol que passa pela janela de um ônibus. As noites, escuras e vazias, não eram diferentes. Ele ainda não tinha certeza de que não estivesse vivendo algum sonho ruim do qual não sabia acordar. Sonhos eram, aliás, uma coisa que ele não tinha mais certeza de saber o que eram. Por muitos dias achou que estaria enlouquecendo e tentava se concentrar na vida que acreditava ser boa antes. Mas, enfim, qual era a sua vida antes? Metade dele acreditava que um dia sonhara ser outra pessoa em outro lugar e este sonho o torturava. A outra metade não via sentido nisso tudo. E assim ele ia vivendo.

Acordava, vestia-se, entrava no ônibus que cruzava ruas e avenidas cheias de gente que parecia funcionar automaticamente assim como ele. Certa vez pensara ter visto, de relance, um lampejo de um enorme sorriso cheio de dentes pontiagudos logo após abrir os olhos de manhã. Mas acreditou que era apenas um fragmento de sonho. Todo dia, depois da viagem de ônibus descia no ponto próximo à sua faculdade e caminhava. Não se lembrava ao certo por que havia escolhido o curso de psicologia, nem sabia ao certo por que continuava vivendo aquela vida. Ele simplesmente tinha tempo demais para pensar nisso, uma vez que sua vida parecia não ser sua. Mas isso parecia loucura, e as pessoas não podem se deixar enlouquecer assim.

Por fim Marcos acostumou-se. Tinha alguns amigos, saía com eles, bebia e acreditava divertir-se. Quando voltava para casa era sempre com uma sensação de que a alegria da noite se desbotava. Quando se deitava à noite na cama, sentia-se vazio. Não era mais naquele sonho que pensava. Era apenas um sonho não é? Era apenas na tristeza e falta de sentido da vida que concentrava seus pensamentos então. Muitas vezes Marcos teve vontade de chorar nestas noites. Mas ele não chorava mais. Havia algo dentro dele forte demais para se deixar fraquejar até nestes momentos. E então Marcos seguia em frente para mais um dia.

Mas mesmo quando não se acredita que as coisas podem mudar, elas ainda mudam...

Ela tinha os cabelos negros e desiguais, os dentes um pouco tortos, talvez meio pontiagudos demais. Ela sorria de uma forma estranha e tinha um olhar desconcertante, penetrante como o de um predador. Parecia tão entediada quanto ele. Conheceram-se da mesma forma que as pessoas se conhecem, ou ao menos de uma das formas como isso acontece. Sentaram-se juntos à mesa no refeitório e comeram em silêncio. Ele desviava seus olhos do prato vez ou outra para olhar para seus seios. Não conversaram naquele dia, mas quando ela se levantou com seu prato vazio onde antes havia tantos bifes, ele sentiu que gostava que ela estivesse ali. Alguns dias depois puxaram conversa em uma situação qualquer, talvez na fila para sacar dinheiro. Ela fazia o curso de biologia, ele sorriu quando seus olhares se cruzaram. Durante o almoço conversaram sobre coisas triviais. E então, sem saber por que, ele a perguntou se acreditava que a vida era apenas aquilo que a maioria das pessoas acreditava ser.

- "Não.", ela sorria com seus dentes desiguais.
- "Eu também não. Eu quero acreditar que há algo mais do que isso." Ele disse, desta vez reconhecia suas palavras. Ele queria acreditar... ele precisava acreditar, embora estivesse perdendo a crença.
- "No que você acredita então?"
- "Eu não sei. Eu acho que acredito que existe um outro mundo..."
Ela não disse nada. Por um segundo ele teve medo que ela o fosse ridicularizar, mas apenas olhava para ele. Não falaram mais sobre isso naquele dia. Ao final do almoço se despediram e sorriam um para o outro.

Talvez a vida fizesse sentido então. Ele ansiava por encontrá-la de novo, e encontravam-se, mas nem sempre conversavam. Por vezes ela simplesmente não parecia interessada. Nestes dias a vida dele era vazia como sempre. Naquele dia tudo indicava que seria do mesmo jeito, até que no final do dia encontraram-se andando sem rumo pelo jardim da universidade. Não se cumprimentaram com nada mais do que um sorriso. Ela parecia triste. Ele a perguntou o que ela tinha e a única resposta foi um balançar de cabeça.

- "Eu acredito que eu vivo no mundo errado." Ele disse, sem pensar em suas palavras. "Este mundo é vazio demais para ser real.".
Por um momento um leve brilho de ânimo preencheu os olhos dela enquanto o vento morno balançava seus cabelos pretos não muito sedosos. Eram cabelos grossos e lisos, com uma certa tendência para ficarem despenteados. Mas o brilho desapareceu, embora ela continuasse a olhar para ele com um ar inquisidor.

- "Se você fosse um outro ser... sei lá, um ser mágico, o que você seria?" perguntou ele.
- "Eu seria... sei lá... talvez eu fosse um lobisomem. Mas por que você está perguntando?"
- "Porque eu queria ser um dragão, e queria companhia em minha maluquice."

Muitas pessoas iriam embora ao ouvir isso. Marcos pensou que ela seria uma destas pessoas, quando ela o fitou com um olhar esquisito e triste nos olhos. Mas ela não foi embora. Talvez não tivesse onde ir, assim como ele. Por fim ela esboçou um sorriso triste e disse que ele era louco. Mas pela primeira vez, mesmo sem saber por que, ele sentiu que não era.

- "Você fuma?" ela perguntou, depois do longo silêncio que se fez.
- "Não. Por que?"
- "Você tem cheiro de cigarro, ou de... sei lá, queimado. Mas nunca te vi fumando..." ela disse por fim.
- "Eu não fumo.", ele repetiu.
- "Nem eu. Não suporto cheiro de cigarro. Não suporto cheiros fortes..."
- "Mas toda aquela carne que você come... quase crua... ela tem cheiro forte. Não tem?"
- "Eu gosto do cheiro da carne" Disse ela, sorrindo por fim.
- "E eu gosto de cheiro de cinzas..." ele começou a dizer, mas percebeu que era algo muito estranho a se dizer. E então completou "É, eu sou esquisito..."
- "Vai ver você é um dragão" emendou ela, com um sorriso sarcástico e cheio de dentes um tanto tortos e pontiagudos.
- "Então você deve ser uma lobisomem..."

A noite caía em dois mundos agora. E ela trouxe uma brisa fresca que levou embora um pouco da poeira.

(Fim da quarta parte)


Esta fábula continua...

Nenhum comentário: