Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

quinta-feira, 28 de outubro de 2004

O Cavaleiro e o Dragão (oitava parte)
Uma fábula interna de Daniel Duende

Se você ainda não leu as outras sete partes da fábula,
leia a primeira parte
leia a segunda parte
leia a terceira parte
leia a quarta parte
leia a quinta parte
leia a sexta parte
leia os fragmentos da sétima parte...

Se você já leu tudo, então vamos à oitava parte...

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Todo o corpo de Amarath estava tomado de dores enquanto este se contorcia sobre a relva. Estava confuso, como que despertando de um sonho, e sentia-se muito machucado. Sua respiração estava entrecortada e seus membros moviam-se em espasmos. Não entendia o que estava acontecendo, nem o que tinha acontecido. Não entendia, sobretudo, se aquilo era, ou fora, um teste e se havia sido bem sucedido.

- "Eu já vi pessoas acordado de forma mais suave." - Disse o dragão.
Amarath fitou a enorme face serpentina e verde, sentiu o hálito de cinzas e coisas queimadas, e quase sorriu. A dor não estava mais em seu corpo. Já as lembranças turvas de um outro lugar onde ele era outra pessoa e conhecera uma mulher lobisomem chamada Silena pareciam reaparecer agora. E elas causavam uma confusão dolorosa...
- "Foi real?" - perguntou ao dragão
- "Você vai aprender que esta não é a primeira pergunta que se faz a respeito de algo na vida." - o hálito do dragão subjugou Amarath quase tanto quanto a resposta. Era como se uma fogueira estivesse troçando de você, quente e esfumacenta. A cabeça do dragão estava agora bem perto da de Amarath.
- "E qual é a pergunta que devo fazer?"
- "Se você não sabe o que quer perguntar, por que se importa em fazê-lo?"
- "Eu quero perguntar. Mas estou confuso."
- "E alguma pergunta diminuirá a sua confusão?"
- "Eu estava realmente lá? Quem era ela?"
- "O que você sente?"
- "Você não vai responder as minhas perguntas?"
- "Sim." - O sorriso do dragão era quase tão grande quanto o céu e seus dentes quase tão ameaçadores quanto as dúvidas que consumiam a mente de Amarath.
- "Então responda! Err... Então responda por favor."
- "Eu respondi uma de suas perguntas, mas você fez tantas que não sabe a qual delas eu estava respondendo."
- "Eu não estou entendendo nada..."
- "Porque você tem pressa em entender. Entender as coisas leva tempo... Agora, levante-se."

O dragão afastou-se de Amarath, virou-lhe as costas a caminhou pela grama muito verde da clareira. Colocou-se a olhar por entre duas das colunas de pedra que pareciam sustentar o céu e fitou o mesmo pensativo. Amarath levantou-se, sentindo-se ainda um bocado zonzo com a experiência. De qualquer forma fitou o céu também, talvez por estar confuso demais para fazer outra coisa, talvez porque estivesse curioso para saber o que o dragão estava olhando.

- "O que você sentiu?" - perguntou o dragão depois do que pareceu ser um longo tempo de observação do azul infinito do céu.
- "Enquanto eu estava lá?" - respondeu Amarath.
- "Você estava lá?"
Amarath ficou em silêncio, mas não estava pensando na pergunta do dragão. Estava pensando no vazio que sentira enquanto era Marcos. Estava pensando naquele outro mundo, e em Selina.
- "Eu não sei. Mas eu acreditei que estava lá, durante um tempo, enquanto... enquanto acreditava que estava lá." - disse Amarath por fim, sentindo-se um pouco estúpido pela frase circular.
O dragão mostrou os dentes, no que Amarath aprendera a perceber que era um sorriso.
- "Eu me senti sozinho. E eu me senti confuso. E eu me senti bem quando conheci Selina. Mas eu também me senti mal quando ela se afastou. Eu me senti muito bem quando estávamos juntos... e depois, quando saltei... eu... eu me senti bem também. Senti que a reencontraria..."
- "E você acha que a reencontrará?"
- "Eu quero reencontrá-la"
- "Por quê?"
- "Porque eu acho que estou... acho que estou apaixonado por ela."
- "Hummm... e por que me perguntou quem era ela e se era real?"
- "Porque eu preciso saber se estou apaixonado por um sonho."
- "Era real enquanto você acreditou, não?"
- "Parecia real."
- "E se não for. Os seus sentimentos não terão sido reais?"
Amarath ficou em silêncio por tanto tempo que conseguiu a façanha de deixar o dragão impaciente. Sentiu-se mais confuso do que nunca, e o olhar severo da enorme criatura o deixava ainda mais tenso. Ele precisava responder alguma coisa, sentia, e então disse o que sentiu que devia dizer:
- "Os meus sentimentos são reais, por que acredito neles. Ela era real também, então, por que eu acreditava nela."
- "E agora? Agora ela é real?"
- "Agora eu não sei."
- "E o que você sente?"
- "Eu sinto que vou descobrir."

O dragão empertigou-se e fitou Amarath com um olhar quase ameaçador. E por fim o perguntou com um tom que fez a sua voz forte e raspada soar como uma enxurrada que desce a montanha:
- "Você voltaria lá para reencontrá-la?"

Amarath respirou fundo e sentiu uma serenidade cuja origem ele desconhecia, mas parecia vir de dentro.
- "Sim. Mas eu não vou voltar porque eu estou aqui para ser testado e me tornar um cavaleiro. Talvez eu volte em outro momento." - Sentiu que tinha dito a coisa certa, mas seu coração estava apertado pelas palavras.
- "Este foi o seu teste."
Amarath ia dizer algo, mas perdeu as palavras. Entendia agora a profundidade com que fora testado em sua firmeza e clareza de objetivos. Por fim, com um meio sorriso no rosto, Amarath perguntou:
- "Mas ela era real?"
- "Isto você ainda não sabe." - disse o dragão, mostrando todos os dentes que eram tão agudos quanto as lembranças que Amarath tinha dos últimos momentos com Selina.

Em algum lugar, longe dali, uma lobisomem entrava em uma casa e devorava uma criança.


(fim da oitava parte)

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