Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

quinta-feira, 14 de outubro de 2004

O Cavaleiro e o Dragão (quinta parte)
Uma das fábulas internas do Duende

O Cavaleiro e o Dragão é uma fábula publicada em partes.
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Ao abrir os olhos e ver a folhagem, as formas das altas pedras do templo na clareira, ele quase não acreditou no que via. Respirou fundo e esticou o corpo, pôde por um segundo tocar a pedra fria. Era mais lisa do que ele imaginava. Ele então riu, com o som de pedras raspando em uma caverna profunda, alongando com prazer seu grande corpo. A dúvida sobre quem é que estava rindo ainda o assolava quando percebeu que não estava mais no mesmo lugar...

Marcos abriu os olhos e sentou-se na cama em sobressalto. Tivera outro sonho? A antiga sensação de não saber o que era sonho e o que era realidade o assolava. Conseguia sentir ainda, no fundo da espinha, a sensação gostosa de esticar seu corpo na relva e olhava à volta ainda confuso pelo despertar repentino. O som do despertador o arrancou de seus pensamentos. Fosse o que fosse, estava ali mesmo e era hora de se arrumar para mais um dia na faculdade. Arrumou-se quase automaticamente e apenas quando esperava pelo ônibus, sentado na parada onde chegavam pessoas a todo momento, lembrou-se de que veria Selina. A sensação quente da iminência do encontro apenas jogou mais carvão na fornalha de seu peito. Vivia agora entre dois mundos e não queria deixar nenhum deles. Não se lembrava naquele momento de ter sentido tanta vontade de chorar antes. Ao menos naquele mundo...

Aquele foi um dia estranho. As nuvens carregadas no céu o tornavam escuro e cheio de sombras. Por duas vezes uma rajada repentina de vento assaltou as árvores enquanto Marcos caminhava até a entrada da faculdade. Não encontrara Selina no caminho e sentou-se na sala de aula amuado, incapaz de prestar atenção nos acontecimentos acadêmicos que o envolviam naquele momento. Sentia-se intranquilo, e este sentimento prolongou-se ao longo de todo o dia. Ao sair então de sua penúltima aula resolveu rumar para o gramado da biblioteca em vez de dirigir-se para sua última aula. Tinha um sentimento estranho no peito, sentia-se ao mesmo tempo doente e muito vigoroso. Caminhava ansioso por entre as árvores balançadas pelo vento sob o crepúsculo prematuro daquele dia nublado. Seus olhos custaram a enxergar o corpo compacto de Selina sentado sob uma árvore. Ela abraçava as pernas e tinha a cabeça mergulhada entre os joelhos, os cabelos esvoaçando ao vento. Ele não sabia se era o frio, ou se sentira um calafrio, ao ver o vazio nos olhos dela quando ela o fitou.

- "Você está bem?" perguntou ele com uma voz cuja rouquidão o assustou.
- "Ahnn... eu tô" disse ela, sem emoção na voz. Seus olhos estavam ligeiramente vermelhos, assim como sua face. Ela parecia ter chorado recentemente, mas trazia agora uma falta de expressão terrível no semblante.
- "O que você tem? Você está esquisita..."
- "Nada." E sua expressão não se modificava, ainda.
Marcos a fitou em silêncio por alguns segundos, antes que ela voltasse seus olhos para o chão e brincasse distraída com um pedaço de grama.
- "O que aconteceu? Me conte..."
- "Ahnn... Não é nada Marcos. Me deixa sozinha, vai..." havia agora um início de expressão de tristeza e confusão na face de Selina. Ela parecia prestes a chorar, mas parecia ainda durona demais para isso...
Marcos pensou por um momento em ir embora. Ele mesmo estava muito confuso agora. Selina voltou a mergulhar a cabeça entre os joelhos e por vários segundos ele a fitou, tendo a crescente impressão de que ela tentava afastar sua presença. E então ele voltou-se e começou a caminhar rumo ao prédio de sua faculdade.

A cada passo ele sentia sua angústia aumentar no peito, e esta angústia parecia queimar. A cada passo, enquanto diminuía sua esperança de que ela fosse chamar seu nome, que aquela situação fosse se reverter ou começar a fazer sentido, esta angústia começava a ficar mais quente. Por fim ele parou e girou sobre os calcanhares. Sentia um leve formigamento no corpo e seus pensamentos estavam turvos. Percebeu que Selina estava de pé agora, apoiada na árvore, e que então começou a andar. Parecia um pouco sem rumo e seus passos não tinham a graça estranha de antes. Eram desajeitados, vacilantes... Por alguns segundos ele pôde apenas olhar. E então caminhou em direção a ela...

Selina o fitou inicialmente sem expressão. O vazio de expressão em seu rosto era como se lhe tivessem roubado a face, os olhos, a vida. Era como se faltasse alguém, ou algo, dentro daquele corpo. Marcos sentiu que uma lágrima descia de seus olhos e escorria, quente, quase queimando sua face. Tentou falar, mas o que emitiu foi quase um grito...
- "O que está acontecendo? Esta não é você!"
Por um segundo Selina não disse nada, como se surpreendida, atordoada, pela atitude de Marcos. Mas por fim também começou a chorar e pareceu cambalear um pouco. Marcos correu para apoiá-la mas foi repelido por um empurrão sem força de Selina. Marcos voltou a falar, e sua voz havia se tornado ainda mais esquisita e rouca a seus ouvidos.
- "O que aconteceu?" Ele perguntou.
Selina chorava, ainda com o braço esticado, paralisado no gesto de repelir o jovem de cabelos longos e um pouco desgrenhados que também tinha uma lágrima na face. Por fim, disse em uma voz muito baixa...
- "Eu voltei a tomar meus remédios..."
- "Que remédios!?". Marcos sentia-se muito alterado, seu peito estava tomado pelas chamas de uma angústia sem par.
- "Eu sou doente. E você também deve ser... A gente não pode acreditar naquelas maluquices... Vai embora..." Selina olhava Marcos nos olhos, e a angústia dela, que parecia antes amortecida, parecia agora lutar para se libertar.

Por fim, Selina correu. Não com a graça com que correra dias antes enquanto brincavam, felizes, naquele mesmo jardim. Correu de forma desajeitada, quase sem rumo, na direção da biblioteca. Marcos caiu de joelhos então, e em um ato ao mesmo tempo estranho e familiar, urrou de raiva e confusão.

Urrou como se um dragão se debatesse dentro dele, e que impedido de expelir suas chamas, o queimasse.
Talvez fosse mesmo isso.

(Fim da quinta parte)


"Toda história sabe por que está sendo contada..."

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