Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

terça-feira, 1 de março de 2005

Prata e Entulho
Um conto de Daniel Duende

Marcelo trocara sua alma por algumas pequenas felicidades. Mas felicidades, ao contrário das almas, não são eternas. O demônio é um mercador impiedoso, não aceita reclamações, e portanto Marcelo só podia se afundar em sua pena de si mesmo, e lamentar. Nem toda a bebida que havia em sua casa, ou todos os cigarros, todos os beijos frios, poderiam mudar seu destino agora. Isso não quer dizer que ele não tivesse tentado...

Carla mal saíra do banho e já tinha um cigarro em suas mãos. Seus dedos mal enxutos molhavam o cigarro, mas não havia escolha. Seus lábios precisavam de algum beijo, qualquer que fosse ele. Ela havia pensado em se matar há algumas horas atrás e isso só a fez sentir-se pior. Sentia-se ridícula, pequena, usada... Sentia-se abandonada, e era exatamente isso que havia acontecido. Havia sido abandonada por alguém que ela acreditara que sempre estaria lá. Este era o motivo, acima de todos os outros, para sentir-se ridícula e pequena, e sem valor.

Chovia um pouco lá fora. Não que isso fizesse grande diferença. As janelas estavam fechadas e nada passava por elas além da pouca luz de um entardecer de março em Brasília. Havia um cinzeiro repleto de tocos de cigarro sobre a mesa e alguma bebida em um copo derretia os restos de gelo. Marcelo estava em silêncio com os pés sobre a cadeira, abraçado aos próprios joelhos como um náufrago em sua ilha isolada. A última coisa na qual podia agarrar-se era ele mesmo. E mesmo assim estava afundando...

O telefone não tocara, e ela nem sabia por que acreditava que tocaria. Por que é que ele ligaria, depois do que foi dito? Estava acabado, não havia mais nada a dizer. Carla estava chorando de novo, estirada sobre a cama. Não se preocupou em fechar a janela. Foda-se a chuva, foda-se todo o resto. Ela estava sofrendo por alguém que não conseguia acreditar agora que não fosse merecedor do sofrimento. Marcelo fora seu príncipe, algo bom demais para ser verdade... e talvez não fosse mesmo. Carla se encolhe, nua sobre a cama, e chora, como se chorar fosse adiantar alguma coisa. Ela lembrava-se dos amigos que a haviam avisado que Marcelo não prestava. Fodam-se os amigos. Foda-se toda a vida. Foda-se ela...

Marcelo tinha medo de fechar os olhos. Sabia que as lembranças viriam. As lembranças de como era tudo belo e simples até o início de fevereiro. Ele e Carla andando por entre os blocos de apartamento de sua quadra. Ele e Carla transando sobre aquele mesmo sofá azul que estava atrás de sua cadeira agora. Ele e Carla, ele e seus livros, e seus contos, e seus amigos... Ele e Carla e a tentação de ter tudo. E então Marília e seus olhos verdes e seu nariz arrebitado. Marcelo havia jogado tudo para cima, toda a vida que agora ele descobria o quanto sentia falta. E transar com Marília naquele mesmo sofá azul tinha parecido ser o ápice de toda a sua vida tola. E talvez tivesse sido, mas depois do ápice vem a queda. Agora Marília havia ido embora. Carla havia ido embora. Sua inspiração, seus amigos, onde tinham ido parar? Onde tinha ido parar a imagem que ele tinha de si mesmo agora? Ele havia trocado tudo que era valioso pelo objeto de desejo, e como todo objeto feito pelo homem e pela mulher, um dia termina no entulho. Marcelo era todo remorso e reminiscências agora. Um tolo no entulho do castelo, seu castelo, que derrubou.

Sua garganta engasga quando ela acende outro cigarro. Estava andando para um lado e para o outro em seu quarto. Carla não sabia o que fazer com toda a sua dor. Ouvir Marcelo contando, com voz baixa e uma ou duas lágrimas no rosto, a forma como a havia traído fora terrível demais para ela. Ela havia batido nele, e a face esquerda daquele que ela acreditava amar ficou manchada de sangue. Ele não revidara, apenas fora embora. Ao sair gritara que nunca mais queria voltar a vê-la. Saiu, desajeitado, de sua casa e de sua vida, tropeçando em seus sonhos, que um dia ela acreditara serem também os dele, ao sair.

Ele pensou em pegar o telefone e ligar. Pedir desculpas, dizer como se sentia, dizer qualquer coisa que pudesse fazer tudo mudar. Marcelo tentava ser homem, mas neste momento era apenas um menino assustado chorando frente ao vaso que quebrou. Naquele vaso, naquele pequeno recipiente, estivera contida antes a vida pequena e boa, pelúcida, que ele vivia. O telefone escorrega entre seus dedos. Ele não é capaz de acreditar que ela o perdoaria. Ele mesmo não é capaz de se perdoar, por que então ela o faria?

Ah, se ao menos ele ligasse. Ela poderia perdoá-lo. Ele apenas precisava dar uma boa desculpa. Qualquer coisa que ela pudesse tentar acreditar apenas para tê-lo de novo a seu lado. Acreditava que não viveria sem ele. Carla não sabia mais o que pensar ou esperar...

Marcelo ouve o tom de chamada do telefone que parece ecoar por todo seu quarto silencioso, por todo o seu mundo. Ligara para Felipe, o único que o entenderia agora. O telefone toca sete, oito, nove vezes e então começa a gravação da caixa de mensagens. Marcelo joga o telefone por sobre o ombro e este pousa pesadamente sobre o sofá azul. Começa a chorar, pois não há mais nada que possa fazer. Depois de tudo que aconteceu ele não consegue acreditar que há retorno, ou qualquer caminho, para a sua vida.

Carla ouve seu telefone tocando e fica paralisada. Não consegue se mexer, nem sequer respirar. Consegue atendê-lo com esforço, dizendo um alô com a voz trêmula. Do outro lado da linha uma de suas colegas de faculdade abaixa o som do carro e pergunta se ela quer sair. Carla volta a chorar ao ver que sua esperança de ouvir a voz de Marcelo do outro lado da linha era estúpida. Explica, com poucas palavras, que não quer sair pois não está legal e desliga o telefone enquanto a voz do outro lado tentava dizer algo sobre não ser bom ela ficar em casa sozinha então...

Marcelo calça o primeiro par de sapatos que vê pela frente. Ele precisa sair. Desce as escadas de seu prédio de cabeça baixa, olhos vermelhos de chorar, e corre da portaria até seu carro. Liga o motor e sai pela cidade. Segue o eixo* quase inteiro antes de sequer pensar para onde pode estar indo. Marcelo não consegue pensar. Estaciona o carro em um canto da calçada e sai andando pelos blocos da quadra. Sua cabeça é pura confusão. Estava na quadra de Carla e não sabia o que faria então.

Carla perde o controle. Varre de sobre sua estante os livros, os porta-retratos, o incensário de latão, os pequenos enfeites de cristal... Não consegue sequer ouvir o barulho das coisas se espatifando na parede e então no chão, algumas delas se quebrando com o impacto. Bate com força, com o punho fechado (como fizera mais cedo com o rosto de Marcelo) contra o espelho que ocupa uma parede inteira de seu quarto. O espelho se espedaça ruidoso e seus cacos se juntam aos cacos do porta retrato que estava no chão. Entre os cacos, na foto, Marcelo e Carla sorriam.

Marcelo acende o último cigarro do maço e dá uma tragada profunda enquanto caminha com passos rápidos. Não sabe por quê ou para onde, não tem plano algum, apenas segue o caminho que já seguira tantas vezes, rumo ao prédio de Carla.

A porta se abre e por trás de Carla surge, de olhos arregalados, sua mãe. Ela diz alguma coisa, mas Carla consegue apenas fitar a própria mão. Um caco de vidro alojara-se entre seu dedo médio e seu dedo anular e o sangue escorria pela palma de sua mão aberta. Duas pequenas gotas de sangue manchavam a prata do anel em seu dedo anular. Carla arranca o anel de seu dedo e o joga pela janela com um grito que poderia ser de dor ou desespero, pouco antes que sua mãe a segure ou abrace, gritando também, tentando entender o que acontecia.

O anel voa pela janela, girando, girando, girando no ar. Acelera sua queda inexorável em direção à terra e pousa quase sem ruído sobre uma pilha de folhas varrida horas antes pelo porteiro. Alheio aos fatos e a seu próprio significado, o anel apenas fica lá.

Marcelo pára, a poucos passos do pilotis do prédio de Carla, e fica olhando para o chão. Um tremor que começa na base de sua coluna toma conta de seu corpo e sua garganta nunca esteve tão apertada. Lá dentro, em algum lugar entre sua cabeça e seu estômago, talvez seu coração, algo parece estar gritando para sair. Marcelo olha para o anel por um instante enquanto o mundo parece parar. Então Marcelo grita, colocando o tempo de volta nos trilhos.

Nada que a mãe de Carla faça parece acalmar a filha, que chora desesperada. Seu pai a quer levar para o hospital para dar pontos na mão, seu irmão mais novo fica na porta de seu quarto com os olhos arregalados como bolas de gude azuis. Carla alterna gritos desarticulados com um choro soluçante. Seu pai grita com ela, tentando acalmá-la, e por fim ela se cala. Então ele começa a falar, quase gritando e com a face vermelha, o quanto aquela situação é absurda, e que não toleraria mais aquilo tudo, que ela não podia perder o controle assim por causa de um derrotado que não a respeitava... Ele continuara a falar mas Carla não escutava mais. Por cima dos soluços da mãe e dos gritos do pai, além do limite de qualquer audição, ela conseguira ouvir os gritos que vinham lá de baixo.

- "Carla, eu te amo!"

O que se seguiu não interessa. De alguma forma tudo se resolveu, embora o os pais de Carla nunca mais tenham olhado para Marcelo sem um olhar de mera tolerância muda. O anel amassou na queda e nunca mais coube confortávelmente no dedo de Carla. O corte na mão, ao lado do anel amassado, deixou uma cicatriz quase imperceptível. Mas quem segurasse a mão de Carla para admirar o anel certamente veria a cicatriz. O rádio do carro de Marcelo foi roubado naquela noite, pois este havia se esquecido de trancá-lo ao sair sem rumo por entre os prédios. O resto ainda era amor, ou assim eles acreditavam, e assim estava bom.

Este é apenas mais um dia de uma história de amor em Brasília. Como toda história de amor, é ridícula, exagerada, um pouco insana. Nada de se estranhar, de fato. Acontece todo dia por aí, embora sejam sempre alguns dos dias mais importantes da vida dos envolvidos, ou assim eles acreditam. É tudo muito confuso quando se é jovem, e o amor é mais do que nunca prata em meio ao entulho nestes anos. Como o anel de prata em meio ao entulho, como a urgência da busca pelo outro que trespassa o momento, a vida e a confusão. É apenas uma história de amor, mas só quem tem coragem de viver coisas assim é capaz de escrever sobre ela sem hipocrisia ou vergonha.

Nada, nunca mais, é o mesmo depois que você vive a sua vida.


* para os não brasilienses: o "eixo" é o nome que damos à pista que cruza Brasília de asa a asa, sendo a principal pista a ir de um lugar a outro do plano piloto.



p.s. alguém sugere ou envia imagens para ilustrar este conto?

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