Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

sexta-feira, 2 de setembro de 2005

Por baixo do verniz do dinheiro

"...E nas torturas toda carne se trai." dizia Zé Ramalho em uma de suas músicas. É justamente isso que está acontecendo com o povo de New Orleans e adjacências depois da passagem de Katrina. Depois que o vento e a água lavaram o verniz de dinheiro e falsa segurança cuidadosamente colocado sobre suas naturezas, começam a mostrar a cara verdadeira de um povo individualista e despreparado para o apuro. É feio de ver, e mais feios ainda comentar, mas não dá para negar. Por trás da máscara de povo mais poderoso do mundo existe uma miríade de pessoas assustadas que rapidamente predam umas sobre as outras quando a casa cai...

Pessoas que antes se cruzavam indiferentemente, tão civilizadamente, pelas ruas da cidade agora lutam por água e comida. Retirados de suas casas enormes cheias de brinquedos caros, dividem agora espaços comunais úmidos e escuros com aqueles que pretendiam ignorar pelo resto da vida. Não há nada mais unificante, nivelante, e humilizante do que a tragédia. Nâo é o seu emprego, seu status social, que importa quando as luzes se apagam e a polícia não pode mais te proteger. É então que você está por sua conta, e o que conta é a sua habilidade de sobreviver, de se virar. Dizem que algumas mulheres trazem à tona o melhor e o pior de nós. A tempestade Katrina passou para mostrar, para trazer à tona, o que é o povo norte americano. Quem passou a vida toda passando apuros está se virando muito melhor. Aqueles que antes eram mais validos, com seus celulares, suas casas grandes, seus carros potentes, agora erram pelas ruas e pelos abrigos chocados com a morte e a destruição de seus frágeis mundos.

Será que eles tem alguma idéia de que aquilo que é uma tragédia na vida deles é bem próximo do cotidiano das pessoas de alguns países que seu mentecapto presidente tem tanto prazer em liberar? Será que enquanto passam sede, fome, frio e medo naquele Dome irão entender o que é viver com medo, desprotegido, sem saber como será o seu próximo dia? Muitos deles vão enlouquecer. Alguns irão simplesmente esquecer. Imagino românticamente que alguns poucos vão tomar aquela experiência como algo libertador, como Evye na prisão de V, para perceber seu mundo com outros olhos. Agora que podem olhar nos olhos daquilo que realmente são, e passar o pior apuro de suas vidas, talvez alguns daqueles Creoles entendam um pouco mais sobre o valor sobrevivente de povos que antes desprezavam.

Desastres naturais como estes mostram que a "livre concorrência" e a "lei da selva" tão romantizada pelos teóricos econômicos norte americanos não é tão bonita assim. Quando tudo mais falta, só a cooperação e a agregação das pessoas do grupo pode salvá-los da barbárie. A verdadeira civilização é a capacidade das pessoas de se unirem em prol da solução de um problema, de forma igualitária e honesta. O resto é verniz, e um verniz solúvel em água...


Boa sorte, povo de New Orleans.

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