Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

segunda-feira, 23 de agosto de 2004

PISTAS
Um de melhores contos de Luana Selva, para quem sabe ler.

Tinha essa figurinha que vinha em salgadinhos, sabe? Dessas que você coleciona? Pois é, essa era de um desses japoneses olhudos e uns monstrinhos horrorosos. Mania que japonês tem com olho grande e monstros! Enfim, essa tinha escrito a palavra Esperança e nunca saiu do estojo dela. Nem essa figurinha nem um relógio que sempre atrasava. Tanta coisa ia e vinha daquele pequeno ambiente imundo.... É, imundo, porque lavar os estojo era o número 4765 da lista de preocupações que ela tinha.

Bem, o engraçado dessa figurinha é que é uma das muitas que ela ganhou; todas com palavras tipo esperança, amizade, amor, e tal. E ela, às vezes tinha essa mania de procurar sinais, pequenas pistas irônicas que a vida largava para se poder desvendar o mistério final. Às vezes ela tinha mania de refutar essas pistas e transformá-las em coincidências sem sentido. Era muito boa nas duas coisas, por isso nunca se decidia.

Essa era uma fase de brincar de detetive e ela pegou essa figurinha e seu cenho se franziu assim, bem de leve, entende? Ficou olhando para essa figurinha e para o estojo. Desde que a ganhou ela nunca a tirou dali e se, por um acaso, a tenha tirado, a devolveu. A tal da figurinha da esperança sempre ficou com ela enquanto as outras sumiam e reapareciam quando bem entendessem.

Dessas figurinhas a que mais tinha repetida era a da Coragem. Muitas vezes se agarrou a uma delas e usou como talismã, mas de nada adiantou. Depois, em uma dessas fases detetive, percebeu que teve coragem para fazer outras coisas. Aí, desatou a procurar as figurinhas e nada de achar. Olhando a figurinha da esperança percebeu que mesmo tendo aquele tanto de coragem, elas só apareciam quando bem queriam. Às vezes achava uma em qualquer canto. Às vezes sacudia suas quatro casas e não achava nenhuma.

O símbolo da esperança parecia uma estrela cadente; só que ela está subindo, então não é cadente. Cada uma tinha um símbolo. Lembrava-se de quando as colecionava. A que mais queria era a da Amizade, ela adorava o japonês olhudo daquela figurinha. Só que nunca a achou. Comeu milhões de pacotinhos de salgadinho, mobilizou todos os seus colegas que as guardavam para ela. Ninguém nunca achou - ou nunca lhe deu - a da Amizade.


Não queria pensar no que isso poderia significar.


Qual eram as outras mesmo? Ela pensava nas outras naquele exato momento. Lembrava-se de todas, mas eu tenho que fazer um esforço. Esperança, coragem, amizade... Amor, ah, claro! O amor. Estava sempre em algum lugar, próximo a ela, sabia que se resolvesse procurar o encontraria, mas sempre tinha que se ir à caça da figurinha e ela nunca estava disposta a isso. Nuca esbarrou na figurinha do amor, ou a achou ao acaso. Tinha também a Confiança, a única que conseguira todas sozinha, com os salgadinhos que ela mesma comeu. Lembrava-se de achá-la apenas nos lugares mais secretos como se ela se escondesse. Quando descobriu que confiava em apenas três pessoas na sua vida inteira, deu uma figurinha para cada.

A Sabedoria era seu marcador de livros favorito. A Luz se perdeu e ela desconfiava que tinha se escondido na mala de alguém que partira ou que se escondia na caixa de brinquedo das crianças. A outra figurinha ela esqueceu o que dizia.

Parara de andar de relógio já fazia uns anos. Sabe por quê? Porque não conseguia viver sem. Por isso andava com um, no estojo, que sempre atrasava, então, ela nunca olhava. Coisa complicada, não? Ela se levantou da cama com aquela figurinha na mão. Fechou o estojo, guardou na bolsa e foi até a janela. Olhou para a figurinha e respirou bem fundo. Um carro passava lá embaixo e o vento soprava meio forte. Ela gostava do vento, sabe? Sempre confiou nele. Então, foi para ele que ela deu a figurinha, jogando-a pela janela. A viu flutuar por um tempo e depois, enquanto a figurinha caía, ela, sem nem olhar para trás, deitou e dormiu.

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