Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

terça-feira, 31 de janeiro de 2006

milk-shake da alma
11:30 da noite, no volante do carro, morrendo de medo da chuva... entendi algumas coisas sobre a arte.

Há dias que eu não escrevo nada que eu considere ter valor artístico. De fato estes períodos de seca criativa tem sido bastante comuns em minha vida nos últimos meses. Meses? Eu disse meses? Eu acho que poderia dizer anos. Há alguns anos não me vejo escrevendo como me via antes. O que será que mudou?

Hoje, dirigindo na chuva, um pouco apavorado por não estar enxergando direito, pelo combustível que estava acabando, pelo cartão de crédito que já acabou (e não me permitia portanto colocar mais combustível), em suma, numa situação entre o desconforto absoluto e o pavor, eu entendi. Eu me acomodei!

Quando a gente se acomoda, quando descobre um jeitinho de viver fácil, sem se importar, sem se tocar, sem estar realmente presente, a gente morre enquanto artista. Sobre o que vamos escrever se a vida segue mansa e tranquila, sem sequer arranhar a superfície da alma... sem tocar de fato lá no fundo?

Anos atrás, quando era mais novo e tudo me assustava, eu estava mais acordado. Eu estava mais atento, prestava atenção nas coisas. Tudo era novidade e tinha um certo ar ameaçador. Confesso que bem depois do final da adolescência eu ainda era lá no fundo um garotinho assustado. Quando o garotinho assustado começou a desaparecer e deu lugar a uma tranquilidade indiferente, eu me acomodei. Quando parei de sentir medo e maravilha com a vida, não havia mais sobre o que escrever...

Sempre houve, sempre haverá incerteza, mas eu não sinto mais medo da incerteza. Sempre houve solidão e sempre houve boas surpresas, as pequenas belezas da vida. Não parei de enxergar as belezas, não parei de ser alcançado pelo sentir, pelo amor ou pela antecipação. Não parei de ficar triste nem de me sentir só. Mas de alguma forma nada disso parecia ser mais tão grande. Distanciado, dirigindo meu ser pela estrada da vida como quem dirige voltando para casa, como se o caminho fosse velho conhecido, eu parei simplesmente de me deixar REALMENTE tocar. Foi aí que, sem perceber, minha inspiração secou.

Não foi um processo rápido nem repentino nem definitivo. Muitas vezes ela voltou por alguns dias, me deixando cheio de idéias e coisas a dizer. Escrevi um pouco nestes tempos, mas a fonte sempre voltou a secar. Depois de um ou dois dias de vôo, eu sempre voltei a caminhar tranquilo e indiferente pela vida. Não é assim que vive um artista.

Sinto falta da emoção. Sinto falta de ser tão completa e profundamente movido pelos acontecimentos da vida que não me sobra outra coisa a fazer do que escrever a respeito. Antes, quando eu tinha medo, quando cada sentimento era gigantesco como uma tsunami e da mesma forma arrasava e fertilizava as praias da minha alma, eu sabia sobre o que escrever.

Hoje, chacoalhado pelo medo, arrancado da rotina de uma noite tranquila na frente do computador para buscar o Metal, o DP e o Uirá no Ministério para salvá-los da chuva, eu senti novamente algo que fazia sentido escrever a respeito. Quando fui sacudido para fora do meu conforto, conformidade e tédio auto-induzido, eu descobri de novo os sentimentos que me fazem escrever.

Uma frase ecoou na minha cabeça então. Talvez em outra ocasião eu achasse que é uma frase boba. Mas hoje à noite, investida de todo o sentimento que me preencheu, ela tomou uma força que a tornou incomumente sábia e poderosa:

"A Arte é um Milk-Shake de alma. Se não for bem chacoalhado e batido e misturado pela vida, não é bom o bastante."

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