Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

sábado, 5 de novembro de 2005

Rascunhos de minha nova fábula...


O Reino

"Só os Reis e as Rainhas podem caminhar no círculo no sentido contrário ao do sol" disse ele, compenetrado. A noite escura sob o manto de nuvens e o vento mais frio do que fresco ficaram com suas palavras, mas ela as escutou e também as guardou para si. Sobre eles as torres ocupavam-se, alheias à humanidade que as erigiu, em marcar as fronteiras do céu visível. Ela permanecia em silêncio hipnótico, sono e atenção. "A tradição diz que um rei não pode abdicar de seu trono. Uma vez que chegue o seu momento de reinar, o rei e a terra são um. Se o rei adoece, a terra adoece e as plantações morrem sobre a terra doente e as pessoas ficam tristes e perdidas. Se o rei cresce e torna-se sábio com os dias, a terra cresce e torna-se fértil e poderosa..." continuava ele em sua litania. "Este é um credo patriarcal, mas eu entendo suas palavras." retorquiu a jovem sacerdotiza. Ele a escutou, mas continuou sua diatribe, com a voz suave porém cheia de importância "...não se pode abdicar do reinado. Se você não ocupar o cargo ao qual os deuses te conduziram, quem o ocupará?". "Você tem razão", disse ela pensativa.

As nuvens se moviam lentas. Sob a bota daquele que se tornara rei havia uma lagarta quase partida ao meio pela envelhecida bota de um jovem rei que retorna do exílio. "O poder foi corrompido por alguns homens e mulheres que utilizaram aquilo que chamaram de poder para fugir de suas responsabilidades. O poder real não se presta a fazer com que as pessoas façam as coisas para você. Trata-se do conhecimento e da responsabilidade sobre o que precisa ser feito, e do direito natural de fazer o que precisa ser feito, advindo desta sabedoria e da natureza real daquele que o possue. Poder é antes de mais nada uma responsabilidade para com A Terra. Uma responsabilidade de fazer aquilo que deve ser feito, e a capacidade de fazê-lo...", continuava o jovem rei. "Não a esmague!", disse ela, apontando para a lagarta. "Ela está quase morta. Eu pisei nela acidentalmente enquanto conversávamos. Veja, ela se arrasta, tem mais da metade de seu corpo paralizado. Vê aquela poça? É o sangue dela, coalhado de suas entranhas. Ela morrerá em pouco tempo", respondeu ele com os olhos fixos na lagarta que se arrastava, corpo rijo e ao mesmo tempo flácido, deixando um rastro de sangue. "Foi por acaso que você pisou nela. Você não tem culpa. Se você sente no fundo de seu coração que deve matá-la, então o faça. Mas não a mate apenas para pontuar dramáticamente a sua fala."

As nuvens se moviam lentas e fluidas pelo céu, como se acompanhassem a lagarta que se movia de forma igualmente lenta porém rija. Os dois jovens ao pé das torres permaneciam parados e em silêncio. O rei estava pensativo. Por fim, concluiu "Irei deixar ela viver. Se foi por acaso que pisei nela, que o acaso leve sua vida...". Sorriram um para o outro. Estavam cansados, e os afazeres reais os esperavam no dia seguinte. Levantaram-se e caminharam por entre as torres, rumo a seus respectivos aposentos. No chão, jazia a lagarta, esmagada pela segunda vez, acidentalmente, pelos sapatos leves da sacerdotiza.

"Se um tolo insistir em sua tolice, ele se tornará sábio", disse o rei. "Só quando desisti de me tornar um rei e percebi que sou um rei, sentí-me pronto para o reinado". "Um rei sábio em sua tolice, pronto para aprender...". O rei e a sacerdotiza sorriam quando se despediram.




Não só aceito, quanto considero bem vindas quaisquer críticas, sugestões, idéias e até mesmo, por que não, elogios... :)

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