O assassinato da verdade...
pensamentos do duende sobre a cultura contemporãnea, e as ferramentas dela para destruir toda a sabedoria...
Quando eu era um moleque, ouvindo de professores pouco motivados falando sobre os índios brasileiros, eu não conseguia entender. Mostravam os índios como um povo diferente, primitivo, que tinha outra língua e adorava uns deuses estranhos que me faziam pensar em aipim (mandioca) e peixes grandes em rios. Isso era, em grande parte, aquilo que tinham para me dizer sobre as culturas indígenas brasileiras. Isso, e que os índios eram ora preguiçosos demais para fazer o trabalho escravo, ora aliados instáveis de portugueses e franceses em suas guerras pela posse da terra que nunca deveria ter sido deles. Nunca me deram a chance verdadeira de entender quem eles eram, ou o que eles pensavam. A todos que estudaram junto comigo, naquele pequeno colégio da Asa Sul, restava a certeza de que os índios eram um povinho (sim, um, porque não nos foi dada grande noção de que haviam muitos povos indígenas) que dava pena de tão tolo e sub-humano.
Alguns anos mais tarde, quando estava sendo introduzido à literatura brasileira, tentavam me forçar a ler os "clássicos" de Machado de Assis e companhia. Diziam que isto era necessário pois "caso contrário não teríamos nunca noção do verdadeiro valor da literatura brasileira". O que ficou para nós, ou ao menos para a maioria de nós, é que boa parte dos escritores brasileiros tinham como única função escrever livros tão chatos que, para que alguém os lesse, era necessário que algum professor de ensino fundamental ou médio os forçasse pela garganta de seus alunos abaixo. Gibis e a literatura de outros lugares, por mais medíocres que fossem, sempre pareciam mais interessantes. Toda a arte era colocada como uma obrigação do homem culto. Nunca nos disseram que quem FAZIA arte era bem diferente, geralmente, das pessoas que a CONSUMIAM e raramente a ENTENDIAM. A verdadeira arte era obra de homens e mulheres que, geralmente, eram tidos como párias ou curiosidades na malha social. Nossa cultura e nossa religião, e principalmente meus professores naquela escolinha cristâ idiota, não são capazes de entender de onde vem a inspiração verdadeira e a arte. A maioria de nós pode viver a vida inteira sem saber disso.
Quando estudamos então sobre os outros povos (basicamente os Europeus, e então os "Norte Americanos", e por fim os "outros") ficávamos com uma impressão de que os povos do hemisfério norte eram tão superiores e tão mais interessantes que nos era muito difícil não ser "colônia" deles. Não que algum professor dissesse tal absurdo, mas pelo que aprendíamos esta era uma conclusão mais do que natural. Os muçulmanos pareciam, em toda e qualquer descrição, um bando fanático e obscurantista de bárbaros invasores e guerreiros cortadores de cabeça. Quando se falava então sobre os povos africanos, era apenas para explicitar o quanto eles eram belicosos, e falar sobre seus hábitos de vender seus prisioneiros de guerra como escravos para quem os desse armas melhores.
Muitos outros absurdos me foram ensinados, seja declaradamente ou de forma implícita, e por baixo deles mais e mais camadas de absurdos. A conclusão a que chegávamos no fim das contas é de que o pensamento europeu de imaginário cristão e lógica positivista era o único que uma pessoa sensata poderia ter. Nunca nos deram opção. Nunca nos falaram que havia outra forma de se pensar. De fato não quiseram correr o risco de que pensássemos de forma diferente, e questionássemos a margarina existencial na qual nos víamos chafurdados. Afinal de contas, por que dar opções a crianças e adolescentes, não é mesmo? Pode se perigoso, pois eles podem ser muito imaginativos...
E assim passam os dias para a maioria de nós. Aprendemos estas coisas, acreditamos nelas, nem nos preocupamos em refletir ou descobrir mais a respeito destes temas. A literatura brasileira, quando não qualquer forma de literatura, fica claramente tachada de entediante e inútil. As outras culturas serão sempre "outras culturas", e não nos parece muito importante entendê-las. Nada que não seja o óbvio que nos é ensinado sobre quem somos, o que devemos fazer e o que é importante ocupa nossas mentes. O resto é coisa de maluco, gente que não funciona, que não está adaptada e só serve para ser contratada para dar um ou outro pitaco, ou para morrer pobre e "louco" mesmo...
Mas, para algumas pessoas, em algum momento deste processo de alimentação de dados, a transferência falha. Em algum momento, alguns de nós se perguntam "e se tudo isso que estão me dizendo for uma grande bolota de merda seca e velha?". Surge a dúvida que nos salva da estupidez induzida do ensino (e da sociedade) tradicional. Alguns se preocupam em ler sobre outras coisas, buscar outras fontes. Aqueles, dentre estes curiosos, que conseguirem beber das outras fontes estando suficientemente libertos do pensamento de colônia do norte que nos é induzido, podem entender alguma coisa. Para os outros, o resto do mundo continua sendo apenas uma curiosidade.
Não é surpresa que a maioria das pessoas, quando olho à volta, me pareça viver dentro de trilhos tão bem definidos. Não tem motivos para questionar, nem para pensar que talvez suas vidas não tenham sentido algum. Será que a vida tem algum sentido? Será que em alguma cultura ela o teve? Se não teve, então não faz diferença você pensar como Europeu ou como Tupinambá ou como Ainú. Se a vida não tem sentido, você apenas descobre o melhor jeito de vivê-la e vai em frente. E, nesta sociedade, ao que parece, o melhor jeito é se adaptar, não pensar e seguir no trilho. Mas e se a vida puder ter sentido, e este sentido fosse presente na vida de outros povos, alguns deles já destruídos ou aculturados por nossa "superior" cultura eurocêntrica (ela mesma destruída por obra própria)? E se nossa grande máquina de fazer dinheiro, de acumular ouro e respeito, tiver destruído a delicada flor da verdadeira vida debaixo de suas rodas de catapulta? Só nos resta buscar aquilo que nos foi negado, nossas raízes, e as raízes de todos os outros povos que foram igualmente massacrados em sua cultura e em sua existência, para encontrar a resposta.
A única conclusão à qual cheguei até hoje é de que nós (eu e você, cara pálida) pertencemos à mais triste, deprimente, derrotada e inimaginativa cultura que já existiu sobre a terra. Tudo que temos é de segunda mão, tem gosto de comida enlatada (e de fato é enlatado da indústria cultural), abrimos mão de tudo para receber apenas ração para a alma. Esta fome da alma, e a aceitação de viver com uma alma faminta, é a morte da vontade e do verdadeiro eu. O que isso tem a ver com os índios, com a literatura brasileira e com os "outros povos"? Tudo, ora bolas. O vírus globalizante, muito mais antigo do que a própria idéia de globalização, adoeceu a nossa cultura, assim como o fez com as culturas africanas, asiáticas e as próprias culturas "primitivas" européias e norte americanas. Nós somos o bagaço da cana, e não há mais suco para extrair. Esta cultura, depois de digerir tudo aquilo que era externo, começa a devorar-se e regugitar-se a si mesma. Vivemos a reinvenção da reivenção e nada mais parece ser real. Não parece, pois não é.
Você é europeu, cara pálida? Você é grego, ou é norte americano, ou mesmo é branco? Você sabe alguma coisa sobre os seus eventuais laços com o povo que era morador (e não dono, pq a idéia de propriedade como a pensamos é tipicamente européia) desta terra? Você sabe alguma coisa sobre VOCÊ MESMO que não te tenha sido dita por outra pessoa? Do que você realmente gosta, além do que te disseram que você deve gostar? No que você acredita, senão o que te disseram para acreditar? Quem, diabos, é você? Provavelmente você pode responder a algumas destas perguntas, mas será que você realmente sabe a resposta delas?
No fim das contas, tudo que sei é que esta cultura brasileira, que cada vez mais parece uma franquia da cultura global, é um engodo. Não somos reais dentro dela. Nada tem valor real. Tudo parece dinheiro, moeda, valor abstrato agregado. Muito pouco do que acreditamos vem da experiência direta, e, de qualquer forma, a maior parte de nossa interpretação de nossas experiências vem de uma orientação externa. Nos dizem até o que pensar sobre o que vivemos. E quando você me pergunta quem são os "eles" que "te ensinaram tudo", eu só tenho uma resposta, e ela vai soar bem enigmática...
"olhe-se no espelho. você faz parte disso tudo".
A nossa vontade está moribunda. Nossa verdadeira noção de nós mesmos, de nosso mundo, está quase perdida para nós. Não há onde procurar respostas, pois pode-se desconfiar de qualquer resposta que seja dada. Não há onde procurar a verdade, pois até nossos olhos estão maculados pelo engodo desta civilização. Só nos restaria perguntar àqueles que ainda estão a salvo desta civilização, mas em sua maioria eles já estão mortos. Só nos resta procurar as histórias, as lendas, aquilo que nossa faminta civilização trouxe para sua pança pois achou interessante demais para enterrar junto com os povos destruídos que as contaram e viveram. Há mais sabedoria nas lendas e nos contos de fadas do que em toda a ciência. Só as verdades mais bem escondidas conseguiram escapar à nossa sede de mentir para nós mesmos sobre o que somos e nossa natureza, e sobre o mundo invisível.
Eu acredito em fadas, pois as pessoas não são confiáveis.
É um ato de vontade.
Quantas pessoas ainda tem vontade?
Que os Deuses nos abençoem... ;)
p.s. post honesto, não revisado e um pouco raivoso. é a melhor semelhança de verdade que pude produzir em meio a um mundo de ilusões...
Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.
Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.
Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.
quinta-feira, 24 de novembro de 2005
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