Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

segunda-feira, 15 de novembro de 2004

agora sim... :)

O Cavaleiro e o Dragão (nona parte)
Uma fábula interna de Daniel Duende


Esta é uma fábula publicada em partes.
Antes de ler a nona parte, leia a primeira, a segunda, a terceira, a quarta, a quinta, a sexta, os fragmentos da sétima e (ufa) a oitava partes...


Já leu?
Então bem vindo à nona parte de O Cavaleiro e o Dragão.



O sol já havia se posto quando Amarath perguntou ao dragão pela sétima vez qual era o segundo teste. Na primeira vez que perguntara o dragão ainda dormia, ou fingia que dormia, e não deu ouvidos à pergunta. Na segunda vez em que perguntara, logo que o dragão se levantou e espreguiçou suas enormes asas, foi mandado caçar, usando apenas um arco rústico e flechas de pedra, animais suficientes para alimentar os dois. Ao voltar carregando com todo o seu esforço duas corsas, Amarath fez a pergunta pela terceira vez. O dragão limitou-se a elogiar as corsas e comentar que costumava comer mais do que aquilo. Após a refeição, quando Amarath perguntou pela quarta vez, o dragão disse que ele devia descer até o rio, banhar-se, e voltar apenas com o pôr do sol.

Entrando novamente no templo, composto por colunas altas de pedra que pareciam escorar o céu e vários altares rústicos, Amarath encontrou o dragão deitado novamente. Por um segundo pensou que este dormira e já se preparava para sentar-se e esperar, mas sentia um pouco de frio e resolveu preparar uma fogueira. Com ramos das árvores próximas preparou uma pequena pilha e se pôs a pensar como arranjaria fogo. Foi quando percebeu que o dragão o observava com uma expressão que poderia ser interpretada como a expressão divertida de um dragão.
- “Pode me ajudar a acender esta fogueira? Estou com frio...” – disse Amarath, com um ar cansado.
- “Posso.
Amarath se afastou da fogueira e esperou por uma enorme labareda, ou qualquer coisa que se assemelhasse ao lendário sopro do dragão. Em seu lugar nada viu, e ouviu apenas a risada raspada do dragão, muito parecida com o ruído de alguém arrastando uma pedra em um vaso de cerâmica.
- “Você não vai acender a fogueira?”
- “Não estou com frio.” – disse o dragão, sarcásticamente.
- “Mas você disse que podia me ajudar.”
- “É óbvio que posso.
- “Mas você não vai me ajudar?”
- “Quem está com frio é você. Por que eu o ajudaria?
Dezenas de respostas passaram pela cabeça de Amarath, desde argumentações sobre a importância que havia em aquecer-se até xingamentos. Mas ele não disse nada por um longo tempo, enquanto congelava no vento frio do anoitecer. Por fim perguntou pela quinta vez se este era um teste, mas o dragão apenas sorriu e pareceu voltar a dormir.

Amarath pensou por longos momentos, enquanto o frio aumentava, e por fim foi encontrar algumas pedras com as quais fazer faíscas. Sentou-se, amuado e frustrado, junto à fogueira e pôs-se a raspar as pedras, que pareciam não estar dispostas a presentear-lhe com faíscas. Sentia-se muito frustrado. De que adiantava ter a seu lado um dragão se este não o obedecia e nem sequer o respeitava? De que adiantava tudo aquilo que passara se iria morrer de frio ali. Angustiado com tudo isso, decidiu caminhar até o dragão e tentar acordá-lo.

Pequenos toques nas escamas agora frias não surtiram efeito algum, assim como não surtiram efeito as pequenas pancadas que ele tentou desferir depois sobre as costas do dragão. Amarath pensou em gritar o nome do dragão, mas não sabia qual era, e então apenas gritou por “dragão”. Sentiu-se ainda mais ridículo ao perceber que isso também não surtia efeito. Por fim, irado, chutou o dragão logo atrás de sua grande cabeça com uma força movida pela raiva e frustração. O dragão levantou-se e empertigou-se de forma ameaçadora. Amarath ficou ainda mais congelado de medo ao ver que talvez não morresse de frio, e sim assado pelo sopro do dragão... ou estraçalhado por seus dentes. Mas mesmo assim, com uma coragem que adveio do momento desesperado, gritou:
- “Isso é um teste!?” – esta fora a sexta vez que Amarath perguntara isso no dia.
- “Quem te deu o direito de me chutar assim?
- “Eu sou o seu cavaleiro e estou com frio. Além do mais estou cansado de ser humilhado e desconsiderado...” – Amarath não teve tempo de terminar a frase, pois o dragão investiu contra ele com aparente fúria. Teve tempo apenas de se jogar para o lado, sem acreditar no que acontecia.
- “Eu vou queimar você da cabeça aos pés! O que você sente a respeito disso!?
Amarath, com presença de espírito, nada respondeu. Apenas colocou-se de pé frente ao dragão tendo a pilha de galhos às suas costas. Quando o dragão abriu sua boca cheia de enormes dentes, Amarath se jogou no chão, sentindo enorme língua de chamas passando por sobre suas costas com um calor terrível e iluminando a noite. Quando o enorme sopro do dragão se extinguiu, Amarath pode ver que não só a fogueira, mas duas árvores estavam também queimando. Levantou-se, tomado ainda por algo muito forte e um pouco insano dentro de si, e disse:
- “Eu SENTIA frio!” – e o disse com um sorriso louco na face.
O dragão olhou um pouco perplexo para a fogueira, e depois para Amarath, e por fim abriu a boca. Por um segundo Amarath pensou que fosse expelir outra de suas mortíferas línguas de fogo. Mas o dragão apenas gargalhou. Amarath começou a rir nervosamente, mas terminou por juntar-se ao dragão em sua gargalhada.
- “Você é louco, ou então mais engenhoso do que imaginava, ou mais provavelmente os dois, Amarath!” – disse o dragão, ainda rindo, o que tornava a sua voz uma confusão pétrea de raspados e ecos montanhosos.
- “E você acendeu a minha fogueira.”
- “Sim.
- “Você ia mesmo me matar?”
- “Você estava com medo?
- “Sim. Mas eu estava com frio e, mais do que isso, eu estava com raiva.”
- “Você me chutou por que estava com raiva?
- “Não, eu te chutei porque estava com frio.”
Os dois se olharam durante vários segundos, e então começaram a rir novamente. Por fim o dragão completou:
- “Eu também estava com frio.
Amarath parou por um momento, e então compreendeu o que havia acontecido.
- “Este era então o teste?”
- “Certamente o teste não era sobre acender fogueiras.
- “Então, qual era o teste?” – Perguntou Amarath finalmente, pela sétima vez.
- “Fazer você enfrentar o seu medo de mim.

Aquela não foi a última vez que Amarath teve medo do dragão, mas certamente foi a primeira vez que pode perceber a real dimensão de sua coragem. Isso faria toda a diferença em sua vida como Cavaleiro de Dragão, e em sua vida como homem.

Amarath estava mesmo se tornando um homem.

(fim da nona parte)


p.s. post publicado, com dificuldade, com o BloGTK. Ainda estou aprendendo os macetes disso aqui...

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