Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

quarta-feira, 28 de abril de 2004

Ceinwyn e Derfel...

"Olhei para a grande porta do salão no momento em que Ceinwyn apareceu e, um instante antes que os aplausos se iniciassem no salão, houve um ofegar perplexo. Nem todo o ouro da Britânia, nem todas as rainhas da antiguidade poderiam ter suplantado Ceinwyn. Nem precisei olhar para Guinevere a fim de saber que ela fora totalmente derrotada naquela noite de beleza.

Essa, eu sabia, era a quarta festa de noivado de Ceinwyn. Ela viera aqui uma vez para Artur, mas ele rompeu o juramento sob o feitiço do amor de Guinevere, e depois Ceinwyn ficara noiva de um príncipe da distante Rheged, mas ele morrera de febre antes que os dois pudessem se casar; depois, não fazia muito tempo, tinha carregado o cabresto do noivado para Gundleus de Silúria, mas ele morrera gritando sob as mãos cruéis de Nimue, e agora, pela quarta vez, Ceinwyn levava o cabresto para um homem. Lancelot lhe dera um monte de ouro, mas o costume exigia que ela desse o presente comum de um cabresto de boi como símbolo de que, a partir desse dia, iria se submeter à sua autoridade.

Lancelot se levantou quando ela entrou, e o meio sorriso se espalhou num ar de alegria, e não era de se espantar, porque a beleza dela era ofuscante. Nos outros noivados, como cabia a uma princesa, Ceinwyn viera com jóias e prata, ouro e atavios, mas nesta noite usava apenas um vestido branco, tendo como cinto um cortão azul claro que pendia na saia simples do vestido, terminando numa franja. Nenhuma prata prendia seu cabelo, nenhum ouro aparecia em sua garganta, não usava nenhuma jóia preciosa, só o vestido de linho e, no cabelo louro claro, uma delicada grinalda azul feita das últimas violetas do verão. Não mostrava qualquer sinal de realeza nem qualquer símbolo de riqueza, simplesmente viera ao salão vestida com a simplicidade de uma campônia, e isso era um triunfo. Não era de se espantar que os homens estivessem boquiabertos, e nao era de se espantar que aplaudissem enquanto ela andava devagar e tímida entre os convidados. Cuneglas chorava de felicidade, Artur puxou os aplausos, Lancelot alisou o cabelo oleado e sua mãe demonstrou aprovação. Por um momento, o rosto de Guinevere ficou ilegível, mas então ela sorriu, e foi um sorriso de puro triunfo. Podia estar sendo derotada pela beleza de Ceinwyn, mas esta noite ainda era a noite de Guinevere, e ela estava vendo sua antiga rival ser dada num casamento que ela própria havia tramado.

Vi esse risinho de triunfo no rosto de Guinevere, e talvez tenha sido sua satisfação maldosa que me fez decidir. Ou talvez tenha sido meu ódio por Lancelot, ou meu amor por Ceinwyn, ou talvez Merlin estivesse certo e os Deuses adorem o caos, porque, num súbito jorro de raiva, apertei o osso com as duas mãos. Não pensei nas consequências da magia de Merlin, em seu ódio pelos cristãos ou no risco de morrer procurando o Caldeirão no reino de Diwrnach. Não pensei na ordem cuidadosa de Artur, só sabia que Ceinwyn estava sendo dada a um homem que eu odiava. Eu, como todos os outros convidados no chão, estava de pé e olhava Ceinwyn por entre as cabeças dos guerreiros. Ela havia chegado ao grande pilar central de carvalho, onde foi rodeada e sitiada pelo barulho de gritos e assobios. Apenas eu estava em silêncio. Olhei-a e pus os dois polegares no centro do osso e apertei as pontas no meio das mãos. Agora, Merlin, pensei, agora, seu velho bandido, deixe-me ver sua magia agora.

Parti o osso. O barulho se perdeu em meio aos aplausos.

Enfiei o osso quebrado no bolso, e juro que meu coração praticamente não batia enquanto olhava a princesa de Powys, que tinha saído da noite com flores no cabelo.

E que agora parou subitamente. Junto ao pilar onde estavam penduradas folhas e frutinhos, ela parou.

Desde o momento em que entrara, Ceinwyn mantivera os olhos em Lancelot, e ainda estavam nele, e ainda havia um sorriso em seu rosto, mas ela parou, e sua imobilidade súbita fez um lento silêncio perplexo cair sobre o salão. A menina que espalhava pétalas franziu a testa e olhos em volta, procurando orientação. Ceinwyn não se mexeu.

Artur, ainda sorrindo, deve ter pensado que ela estava nervosa, porque a chamou, encorajando. O cabresto nas mãos dela tremeu. A harpista tocou um acorde inseguro, depois levantou os dedos das cordas, e enquanto as notas morreram no silêncio, vi uma figura de capa preta sair da multidão atrás do pilar.

Era Nimue, com seu olho de ouro refletindo as chamas no salão perplexo.

Ceinwyn olhou de Lancelot para Nimue e então, muito devagar, estendeu um dos braços cobertos pela manga branca. Nimue pegou sua mão e olhou nos olhos da princesa com uma expressão enigmática. Ceinwyn parou um segundo, depois assentiu minimamente. De súbito, o salão se encheu de conversas enquanto Ceiwnyn se virava de costas para o tablado e, seguindo Nimue, mergulhava na multidão.

As conversas morreram, porque ninguém conseguia encontrar uma explicação para o que estava acontecendo. Lancelot, deixado de pé sobre o tablado, só podia olhar. O queixo de Artur havia caído enquanto Cuneglas, meio levantado de sua cadeira, olhava incrédulo sua irmã atravessar a multidão que se afastava do rosot feroz, marcado e escarninho de Nimue. Guinevere parecia pronta pra matar.

Então Nimue captou meu olhar e sorriu e senti o coração batendo como uma coisa selvagem aprisionada. Então Ceinwyn sorriu para mim e eu não tinha olhos para Nimue, apenas para Ceinwyn, a doce Ceinwyn, que estava trazendo o cabresto de boi por entre a multidão de homens até o lugar onde eu estava. Os guerreiros se afastavam para o lado, mas eu parecia petrificado, incapaz de me mexer ou falar enquanto a princesa, com lágrimas nos olhos, vinha até mim. Nada falou, apenas estendeu o cabresto, oferencendo-me. Uma confusão de falas atônitas cresceu a nossa volta, mas ignorei as vozes. Em vez disso, caí de joelhos e peguei o cabresto, depois segurei as mãos de Ceinwyn e as apertei contra o rosto que, como o dela, estava encharcado de lágrimas.

O salão explodia em raiva, protesto e espanto, mas Issa ficou acima de mim com o escudo levantado. Nenhum homem entrava com uma arma de gume num salão real, mas Issa segurava o escudo com sua estrela de cinco pontas como se fosse derrubar qualquer um que questionasse aquele momento espantoso. Nimue, do meu lado, estava sibilando maldições, desafiando qualquer homem a questionar a escolha da princesa.

Ceinwyn se ajoelhou, até seu rosto ficar perto do meu.
- O senhor fez um juramento de me proteger, lorde.
- Fiz, senhora.
- Eu o liberto do juramento, se for o seu desejo.
- Nunca - prometi.
Ela se afastou ligeiramente
- Não me casarei com homem nenhum, Derfel - disse ela em voz baixa, os olhos fixos nos meus. - Eu lhe darei tudo, menos o casamento.
- Então a senhora me dá tudo que eu algum dia poderia querer - falei, com a garganta cheia e os olhos turvos de lágrimas de felicidade. Sorri e lhe devolvi o cabresto. - É seu.
Ela sorriu diante desse gesto, depois largou o cabresto na palha do chão e me deu um beijo suave no rosto.
- Acho - sussurrou maliciosamente em meu ouvido - que esta festa ficará melhor sem nós. - Em seguida nos levantamos e, de mãos dadas e ignorando as perguntas, os protestos e até mesmo alguns aplausos, saímos para a noite enluarada. Atrás de nós havia confusão e ira, e na frente uma multidão de pessoas perplexas, através da qual andamos lado a lado. - A casa atrás do Dolforwyn está esperando por nós - disse Ceinwyn.
- A casa das macieiras? - perguntei, lembrando-me de quando ela contou sobre a casinha com a qual sonhava na infância.
- Aquela casa - disse ela. Tínhamos deixado a multidão reunida perto das portas do salão, e estavamos indo para o portão de Caer Sws, iluminado por tochas. Issa tinha se juntado de novo a mim, depois de pegar nossas espadas e lanças, e Nimue estava do outro lado de Ceinwyn. Três das serviçais de Ceinwyn corriam para se juntar a nós, bem como uns vinte dos meus homens.
- Tem certeza disso? - perguntei a Ceinwyn como se, de algum modo, ela pudesse voltar os últimos minutos e entregar o cabresto a Lancelot.
- Tenho mais certeza do que de qualquer outra coisa que já fiz - disse Ceinwyn calmamente. Em seguida me olhou, divertida. - Alguma vez você duvidou de mim, Derfel?
- Duvidei de mim.
Ela apertou minha mão.
- Não sou mulher de homem nenhum. Só de mim mesma - em seguida gargalhou de puro deleite, soltou minha mão e começou a correr. Violetas caíram de seu cabelo enquanto ela corria por puro prazer sobre a grama. Corri atrás dela, enquanto atrás de nós, pela porta perplexa do salão, Artur gritava para que voltássemos.

Mas continuamos correndo. Para o Caos."
(O Inimigo de Deus, segundo livro da trilogia das Crônicas do Senhor da Guerra, pgs. 78-82.)

Eu sempre choro quando leio esta parte. Não é apenas a beleza da história tocando as cordas de meu romantismo incurável. Tem algo a ver com magia e com a coragem de se fazer o que se sabe que se deve, e que se quer, fazer. Deve ser a terceira ver que a leio. Sou viciado em me emocionar com coisas belas. Uma de minhas deliciosas maluquices, ou não.

Sentei na soleira da porta e fiquei olhando as estrelas. Geralmente saio para fumar na varanda mas hoje, por preguiça de abrir a porta ou algum outro motivo qualquer, preferi ficar à porta de casa para soltar minha fumaça. O céu estava claro, um autêntico céu noturno brasilense sobre as árvores da colina. Naquelas estrelas, as mesmas que recaem agora sobre tantos outros lugares, eu via o meu passado e talvez uma sugestão de futuro. Não que eu seja um bom leitor de estrelas. Não. Eu sou apenas um apaixonado por seu brilho, e isso me basta. O Cruzeiro do Sul já havia dançado um bocado pelo céu agora, desde a ultima vez que estivera alí, desde o último cigarro.

Estava me lembrando da sacada onde me sentava para ler "O Rei do Inverno" de Bernard Cornwell, o primeiro livro da trilogia do Senhor da Guerra. Me sentia quase um rei naquela sacada, naqueles aposentos amplos e isolados no terceiro andar da casa, com a vista das montanhas e da cidade de Itaipava que dorma àquela hora. Estava me lembrando como me sentia então naqueles últimos momentos antes do caos que tomou minha vida depois daquilo. Eu me sentia feliz. Eu era então um rei ainda coroado. Lá embaixo meu reino dormia.

Olhando para estas estrelas me lembro de outros passados também. Sinto saudades do passado e algumas ansiedades pelo futuro. Ansiedades pelo futuro que sei, e pelo que não sei. Isso faz parte do que me faz me sentir vivo. Neste momento debaixo do veludo estrelado, o passado e o futuro não parecem fazer sentido. Nem mesmo eu parecia existir. Tudo é apenas a estória de muitas vidas. Meu conto mais longo...

Eu não tenho certeza de onde venho (mas lembro de coisas bonitas da estrada) e não sei para onde vou (há tantas possibilidades e surpresas no caminho) mas certamente esta noite me lembra de uma coisa: de que a vida é bela.

Algum dia eu reencontro meu reino.

Um comentário:

Anônimo disse...

Essa também sempre foi uma das minhas partes favoritas desse livro.Gostei do jeito que você escreve,passa esses sentimentos bons para os leitores,está de parabéns!