Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

quarta-feira, 7 de abril de 2004

A Batalha Pelo Sono.
um velho texto que escrevi há anos atrás. achei ele agora. ele faz muito sentido, principalmente pq estou voltando para a velha casa onde ele foi escrito...

sim... é um texto longo

"É tão bom ver novamente minha casa depois de uma noite agitada e vazia como esta. Depois da estrada escura, depois de dirigir ao longo de todo o reto e entediante eixão, enfim estou em casa. Estaciono meu carro quase com uma sensação de alívio que não chega a ser prazer, mas é bastante boa. Desço do carro, pego celular e cigarro e me dirijo à familiar e segura porta de minha casa. Coloco as coisas que carrego sobre a tábua de passar roupa, como sempre, o velho ritual. Pego minha chave, como sempre, e aperto o interruptor para acender a luz, como sempre. E então a surpresa: não há luz! A tempestade que desabou há algumas horas atrás deve ter derrubado um fio ou coisa parecida, claro. É muito normal faltar energia após uma tempestade, mas mesmo assim me sinto o mais azarado dos mortais. A sensação de alívio se foi por completo. Vai começar mais uma batalha. A batalha para acertar o buraco da fechadura, a batalha para conseguir navegar pela cozinha na escuridão completa e ainda achar uma vela em meio ao universo silenciosamente tátil em que minha cozinha se transformou. Móvel, bancada, cadeira, mesa... Ah, enfim uma vela! Meu júbilo dá lugar a um novo vazio, meu isqueiro está sem fluido, não há como acender a vela. Heroicamente retraço meu caminho, sem saber ao certo o que procuro, mesa, cadeira, bancada, móvel... Ah, enfim, uma lanterna! Faz-se a luz!
Agora é tudo mais fácil, não é? Claro que é! Agora consigo guiar meu caminho pela cozinha até a porta do meu quarto, e encontrar o caminho até minha cama. Sobre ela, molemente me encara uma aranha. Esta parece ser a pior parte, não é? Claro que não, me sinto satisfeito de ter algum ser no qual descarregar meu desconforto e raiva pela situação. Raiva mesmo eu sinto quando me vejo tendo que limpar os pedaços da aranha esmigalhada de cima de meu cobertor, mas a estupidez tem destas coisas não é mesmo? Deito-me satisfeito então, pensando que agora só falta dormir. Ledo, redondo e ledo engano. Primeiro me lembro de como é desagradável dormir com tantas coisas no bolso, e resolvo trocar de calça. Depois resolvo checar a porta, e depois ainda me lembro de escovar os dentes (me lembrando aterrorizado de como foi terrível minha ultima crise de gengivite). Passo a passo a luz da lanterna que antes parecia um sol a brilhar na escuridão começa a parecer novamente a real bolota de luz que sempre ilumina menos do que gostaríamos. Enfim, depois do que parece uma eternidade realizando tarefas simples que se tornaram complexas nesta escuridão, consigo me deitar. Agora sim, penso, só me resta dormir!
Como posso me enganar tanto em tão pouco tempo? Tão logo me aninho em minha cama, satisfeito por terminar tudo que tinha que ser feito, e me aquieto começo a perceber o enorme silêncio e a enorme escuridão que se apodera de meu quarto, e de todo o meu mundo, afinal. O silêncio é cortado por barulhos infinitamente altos dos calangos passando há metros de distância do lado de fora da casa e das telhas da sala estalando. Todos os ruídos ficam tão altos e assustadores quando se está no escuro completo, não é mesmo? Sinto-me pequeno e desprotegido, deitado na cama com apenas um lençol, que nem sequer vejo, me cobrindo em meio a este mundo negro e assustador e cheio de barulhinhos. Começo a pensar em quantas aranhas mais podem estar me rodeando, esperando que eu apenas durma para passearem alegremente sobre mim e me picarem por pura maldade. Começo a imaginar também todos os terríveis ladrões equipados de poderosas lanternas e com uma enorme mira para atirar no escuro que podem estar rodeando a casa. Antes de começar a pensar em demônios da dimensão das trevas e em alienígenas venusianos nada voluptuosos que podem se mover na escuridão completa com facilidade eu resolvo pegar minha espada e coloca-la ao lado da cama. Então me sento na beirada da cama e rio um riso nervoso de meu próprio ridículo. Eu tenho vinte e quatro anos, um homem que ao menos deveria ser um homem feito, que entende das coisas deste mundo e do mundo dos espíritos, que banca o grande fodão na frente de todo mundo... E que tem medo do escuro. Patético, simplesmente patético.
As horas na escuridão passam lentas. Tento pensar em ex-namoradas, tento pensar em Kendo, compor uma aventura de RPG e até mesmo começo a inventar diálogos com pessoas de meu círculo de amizades que devem estar dormindo sonoramente neste momento, indiferentes a meu drama patético. Tudo para tentar distrair minha cuca amedrontada pelo escuro. É tudo em vão. Basta uma folha roçar numa telha ou uma das portas da casa estalar que novamente Daniel já está de pé, segurando desajeitadamente sua espada em uma das mãos e a lanterna em outra, como se fosse mesmo possível, ou mesmo útil, empunhar uma espada com apenas uma mão... contra um ruído. Dividido entre a resistência a ser ainda mais ridículo e a convicção de que o sono será impossível, resolvo então pegar minha espada de bambú, a lanterna, meu celular e um livro (maldita mania de carregar um livro para todos os lados mesmo que ele seja absolutamente inútil) e me postar na cozinha, montando guarda contra todos os ruídos e rangidos. Imagino que eu estivesse mesmo sendo assustador para todos os sons, pois eles se calaram até o momento em que a luz voltou, pouco antes do amanhecer, me causando um susto maior do que qualquer som. Ah, já não era sem tempo! Deito-me jubiloso em minha cama e penso que agora sim poderei dormir, com todos os ruídos maravilhosos da eletricidade me cercando. O zumbido delicioso do estabilizador de meu computador, os estalos cadenciados e enormemente civilizados da geladeira, o tac tac delicioso do relógio. Meu Deus, como eu adoro os ruídos da civilização provida de energia elétrica!
Eu poderia acabar esta história por aqui, mas me recuso a contar uma passagem tão patética de minha noite sem ao menos termina-la, de uma forma um pouco menos patética, com uma reflexão. Somos todos tão viciados em nossos luxos civilizados, não é mesmo? Mesmo morando em cima de uma simpática colina com vista para metade da cidade avião, e livre de todos os ruídos desta, não sei passar sem estes luxos. Posso valentemente matar aranhas, andar na chuva como a maioria nas pessoas normais não acharia de bom tom, conversar com árvores e invocar duendes para me protegerem quando subo minha estrada de terra, mas não sei ficar confortável sem energia elétrica. Não consigo dormir num quarto escuro sabendo que não está escuro para que eu possa dormir melhor e sim pois não há energia para acender minha querida lâmpada fluorescente. Sinto-me inseguro sem a energia elétrica mesmo quando ela não me seria útil de forma alguma. É como se, sem ela, eu estivesse desprovido do alcance, da proteção, da mãe civilização. É como se minha casa fosse transportada para o meio do mato, e como se tudo se tornasse assustador e perigoso. Esta sim é a coisa mais patética, mas este é o patético de todos nós. Pense nisso da próxima vez que estiver tropeçando pela cozinha de sua casa procurando uma vela para iluminar seu caminho, ou um isqueiro para acende-la. Não somos então todos macacos metidos a fodões com medo do escuro e da natureza?"

(daniel duende, em algum momento de 2002)

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