Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

domingo, 11 de julho de 2004

O DIA MAIS FELIZ DE SUA VIDA
um conto de Luana Selva Ortêncio e Só.

Ela era apenas uma caixa de banco. Ficava ali, perdida, naquele guichê branco, atrás daquele vidro; devaneando, até que alguém se aproximava. Aí era hora de ligar seu sorriso brilhante, aquele que iluminava seu rosto, que se estendia até os olhos, que causava mudanças no ar. O “bom dia” era parte do pacote: nem muito efusivo nem muito apático. Sua voz era suave, seu tom sincero. O sorriso fazia parte do “bom dia” assim como o “bom dia” fazia parte do sorriso e as pessoas realmente sentiam que teriam um ótimo dia daquele momento em diante.

Quando os clientes se iam, quando os colegas não mais precisavam de sua ajuda, o brilho sumia, seu olhar se perdia e ela se ia para bem longe dali. Só mais uma caixa de banco que os clientes tinham que chamar três vezes para que ela os percebesse e lhes desse seu radiante sorriso.

Toda vez que ela sorria e falava se sentia cansada. Queria apagar e levar sua mente lá para aquele lugar distante: um parque de diversões, um trenzinho indo bem devagar, um túnel, onde aconteceu o momento mais feliz de sua vida. Ela podia sentir o cheiro da grama molhada, podia ouvir o ranger do trem sobre o trilho, a musiquinha do carrossel que girava no centro do parque, a luz do sol passando por entre as folhas das árvores. Tudo. Perfeito.

Toc toc toc. Batiam no vidro. “Bom dia, senhor!” ela sorriu através do vidro. Atrás dele havia uma grande fila, então ela teve que distribuir sorrisos até o fim de seu turno. Parou, aliviada. Seu brilho se foi e ela voltou ao parque. Por pouco tempo, entretanto, pois era hora de ir.

Passos e movimentos lentos, ela se arrumava mecanicamente no banheiro. Cabelos longos presos por um lápis, saia até um pouco acima dos joelhos, camisa cinturada, uma bolsa preta, sapatos fechados de salto médio. Era só mais uma caixa de banco, cabeça levemente abaixada, olhos vazios, total indiferença ao mundo à sua volta. Ela se vestia com sua capa de insignificância e atravessava a cidade à caminho de casa.

Chaves na mesinha, comida para os gatos, banho, tv. Com o controle nas mãos, ela se perdeu. O dia estava próximo, o aniversário daquele dia maravilhoso. Dezesseis anos atrás, lá estava ela, uma tiara a lhe prender o cabelo, vestido branco e rodado, sapatos fechados, tomava sorvete enquanto o trenzinho passeava pelo parque, bem devagar, mas, ela esperava, pacientemente, assim como esperava o aniversário daquele dia no parque quando ela poderia revivê-lo.

Aquele momento mágico. O trem entrava no túnel. Seu rosto impassível fitava algo além da tv. Ela estava lá, naquele momento, olhando para cima, vendo as folhas das árvores recortadas pela luz do sol. Enquanto o trem adentrava a escuridão, enquanto o dia ficava mais frio, ela via as folhas desaparecendo, até que a escuridão foi tudo o que sobrou.

Sentada de frente a tv, ela prendeu a respiração e, então, seu radiante sorriso iluminou toda a sala enquanto ela revivia, em sua cabeça, o momento em que matou sua mãe pela primeira vez.


Eu sou fã!

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