Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

sábado, 29 de março de 2003

O Bar Nosso de Cada Dia

Estava com sono. Sabe como é: pressão demais nessa vida,
seguida de um "sim" ao menor esboço de um possível convite
pra tomar uma antes de voltar à maldição do ciclo cama-
trabalho-cama. São dias e dias fugindo dessa sina, negando
essa coisa que minha maldita consciência teima em chamar de
realidade.

Prólogo : O Convite.

É sempre a mesma ladainha, o mesmo script, a mesma comédia
que você não cansa de assistir, afinal, essa vida tem que ter
o mínimo de felicidade...

- Tudo bem, beleza. Mas só uma, hein !

Firmada a idéia...

Primeiro ato : O Bar.

A escolha do local do atentado. Não é querer ser
preconceituoso, mas já sendo então, se tiver muita gente pra
opinar, aí danou mesmo. Serão ou nenhuma ou quatrocentas
opções, que terminarão num lugar bonitinho, entenda-se , pico
cheio de pessoas sem graça, de gel, onde a cerveja é
quente e custa o preço de uma dose de Red lá no escritório,
sem falar naquelas porções que deveriam ser chamadas de
punhado, com preço equivalente à dois rodízios regados à
caipirinha de vodka. Mas como em toda boa bebedeira que se
preza, você acaba parando naquele maravilhoso barbuteco,
cercado de vagabundos, diga-se, os bons e velhos amigos, onde
todo papo é bom, toda cerva é gelada, toda porção é de
amendoim com casca e todo assunto sempre envereda pro mesmo
destino : Elas.

Segundo ato : O Garçom.

Como neto de um bom garçom, sei que há sempre dois tipos : os
que você já conhece e os que não. O primeiro tipo já faz
aquele sinal de positivo lá do fundo do bar, enquanto você
ainda está na porta, correndo o olho no perímetro à caça de
uma boa mesa pra você. O segundo está ocupado, finge que
não te viu antes de se desocupar, depois vai até você com a
desnecessária pergunta "- Vocês vão querer uma mesa ?". Aí
vai verificar se tem uma disponível, etc e tal.

Você já entra batido, o primeiro garçom já está te esperando
na mesa que ele descolou com a mão estendida pra lhe
cumprimentar com a frase "Grande garoto! Tudo em cima ? ...
Graças à Deus..." . Pergunta da família, do trabalho, das
mulheres, cumprimenta os amigos que estão contigo, enfim, se
porta com o bom sujeito deve se portar. Agora se você estiver
acompanhado de uma garota e nada mais, o procedimento é
outro, claro... Ah, é bom ser rei !
Só não nos esqueçamos que o primeiro já passou por ser o
segundo.
Compreensão é uma boa medida.

Terceiro ato : A Cerveja.

O primeiro garçom fará a desnecessária porém maravilhosa
pergunta : "- Vai aquela gelada ?!". Você responde com um
sorriso tranquilo enquanto ele já está lá no freezer, nem te
viu. E ele sempre trará a quantidade certa pro número de
malandros da mesa. Elas vem tinindo de gelada, suando como
bela morena bronzeada. Ah, a eficácia é sempre bem vinda ! O
segundo, depois de voltar de mais zentos pedidos que ele
parou pra atender no trajeto até o balcão, vai mandar a
infame "- Vão beber algo ?". Porra ... É luóóóógico que
eu vou beber algo, ou melhor, "álcool". Pra enterrar só falta
perguntar se eu vou quer uma amarula, ou coquetel de frutas
ou batida de pêssego com champagne. Tem nego que força a
barra, sem noção. Aí você já desqualificou o elemento, chama
ele por qualquer nome que vier na cabeça mesmo, procura pelo
bar algum garçom com a pinta do primeiro. Mas voltando a
cerveja, ahhhhhh .... O primeiro gole ! O dilúvio inundando o
sertão da garganta, a cachoeira rebentando no braseiro.
Principalmente depois da secura provinda dos anteriores
episódios. O som "Tsclóó!", a espuma, o copo cheio e gelado...
Como é bom se sentir filho de Deus....

Quarto ato : O Processo (o papo, o ambiente, o visual, o
clima....)

Cerveja gelada, roda de amigos, língua solta, aquele
burburinho rolando...
Que importa ? Falemos de qualquer coisa, tudo é bom motivo e
assunto pra prosa. Até mesmo política, sexo, religião e
futebol. Como Lennon disse uma vez "- Tudo que você faz é
pensando em sexo". Ele não deixa de ter razão.
Quem não gosta da coisa ? Só quem ainda não provou. Depois de
algumas garrafas e verbos, você levanta o olho e ativa o
radar, até mesmo quando a patroa ou a "menina em processo de
anexação" possa estar de guarda. Elas sempre estão lá, lindas
ou "simpáticas" (afinal, foi você que ainda não bebeu o
bastante), loiras ou morenas, mestiças ou mulatas, altas,
baixas, novas, não tão novas, sérias, loucas. É como disse
Roger Moreira : "- Eu gosto é de mulher..." Nesse ponto
Nelson Rodrigues é Deus e é diabo. Sem hipocrisia, a coisa é
assim. Por mais sossegado que o sujeito possa ser, seu
instinto detecta e grita, avisando-o em absoluto silêncio,
arrombando o tímpano. Daí pra frente vai do caráter de cada
um. E lá vem mais uma (cerveja), e lá vem mais uma (prosa na
mesa), e lá vem mais uma (garotinha ruiva vestida de
colegial). E quando você menos percebe, já caiu no
maravilhoso "ciclo de mesa de bar", no qual você pede que seu
fígado resista bravamente até o fim, que seu relógio congele
o tempo dali por diante, que tudo seja de novo e de novo e de
novo e de novo, até mesmo quando a mesma maldita consciência
teima em lhe dizer que aquilo não se resume na suprema
realidade. Esse estágio da noitada é o mais contínuo e mais
longo, apenas interrompido momentaneamente por aquela tirada
de água no joelho, que depois da primeira, nunca estanca. Daí
pra frente, só no piloto automático:

- Oh Amadeu, manda mais uma aê !!!

- Putz, e aquela vez que a gente foi pra São Thomé...

- Trilililililili... Alô !? Faaaaala meu !! Chega ai, vem pra
cá, tem lugar,
tá o bicho...

- Nuoooossa velho !! Olha isso !!! Futura mãe dos meus
filhos...

- Puta que pariu !! Esse som é demais !! Cê tem aquele que
tem eles na
capa...

- Oh looooco... Parabéns hein... (batendo palmas de pé,
fitando ela, que
passa apertada por entre as mesas)

- Porra, mas esse cara é o maior cuzão, cê ficou sabendo o
que rolou ? Não ?
Então...

- E naquele filme que ele faz o papel do cafetão e ela o da
freira...

- Oh... Oh... Oh! Vamos pedir um lance ai pra comer... é,
porçãozinha...
pode ser...

- Ai eu sai com a mina. Passei na casa dela umas onze...

- Mas eu já te disse, esse cara não te merece minha amiga,
ele não presta...


- Escuta, vamos pedir um negócio mais forte ? Quem me ajuda ?
Oh Camarada,
manda uma bela dose daquele....

- Oh Amadeu !!! Vocês vendem cigarro aqui ?? Manda um
malboro...

Ah, que bom seria ! ... E é, até certas horas :

- Ti considéru pra caralho... hicup !

- Oh Amadeu !! Fecha a nossa !

- Oi ! Tudu beiiin ? Cê é linda...

- Pô, mas já encerrou ? E a saideira ??? Ah, vá... Fala lá
com o gerente...

- Vozê é meu amiguuu... irmãum di verdatchi...

- Vamo protru lugar qui já fechô !

- Quem pode levar o Gordo embora ? Olha o estado dele...
Alguém sabe onde
ele mora ??

- Velho, cê tá beim mesmu né ?? hicup ! Óh, vai tchivagar,
viu... hicup !

- Me liga amanhã.. vamo marcá de tomá uma...

- Pó de chá...

The song remains the same...

Quinto ato : A Conta

Tudo corria muito bem no País das Maravilhas, até que Alice
acorda do sonho.
À sua frente, o garçom com cara de "Paga logo e sai fora que
eu quero
dormir..." segura aquela famosa capinha de couro sintético
contendo
internamente o motivo do fim da brincadeira. Não tem jeito, o
caminhão da
Granêro já chegou. O terror é total. Todos tentam passar a
bola até que um
toma coragem e dá com a vista no total. O restante da mesa
fita-o como se
olhassem pra cara do mensageiro da morte prestes à revelar o
segredo do
universo, até que estoura o rojão...

- Pu-ta-qui-pa-riu !!! Tudo isso !?

É incrível... Todos acham que os 87 chopps, 5 conhaques, 4
vodkas e 2
uísques consumidos eram cortesia da casa. Começam as
negociações :

- Confere aê ?

- Quem tem calculadora ?

- Zê é burro ? Num zabi vazê gonta... hic !

- O pior é que tá certo...

O estado etílico se desfaz por brevíssimos instantes...

- Quem vai jogar no cartão ? Tem jeito ai ?

- Oh Amadeu ! Empresta uma caneta !

- O Gordo deixou uma grana ai ? E o camarada dele ? ...
Porra ! Toda a vez é
isso !

- Garaio, errei di novo... hic ! Breenchi ai bra mim... hic !
Azina
tambéim...

- Confere aê ?

- Ôh Amadeu ! Vai rolar uma saidêra no vasco, né ? Ôh
Amadeu...

- Ôh Amadeu ! Ôh Amadeu ! Saidêra Amadeu !!!

É sempre a mesma choradeira. E sempre rola uma saideira...

Sexto ato : O Caminho de Volta.

É aquela coisa do "Falô! Falô!", se despede de quem se
lembrar e cambaleia
até o carro. Difícil andar em linha reta. Como venta nessas
horas. Abre as
duas janelas, liga a ventilação do Uninho no máximo (que é
fraca), liga o
som meio alto... Vai pensando na garota ruiva com uniforme de
colegial, nos
brothers que reviu tomando cerveja, no rango gelado que te
aguarda em cima
do fogão, no trabalho daqui há algumas horas (chôôô maus
pensamentos!). O
importante é não dormir no volante, já que encanto foi
quebrado pela tal
realidade do estado humano. O bom boêmio (pra não chamar de
bêbado) tem
sempre carro ensinado. É entrar, girar a chave e acordar em
casa. Às vezes
achatado atrás de um caminhão parado às 04:30 da madruga de
uma segunda pra
terça. É... merdas acontecem. Mas Deus ajuda os bêbados, já
dizia o bom
ditado.

Sétimo Ato : Lar Doce Lar, ou, A Cama.

Depois de conseguir tirar a calça sem tirar o sapato antes,
você vai
cambaleando até o banheiro, rega as plantas, respira fundo...
Às vezes um
último desabafo com o Dr. Hugo é necessário. A cena em si é
deprimente, mas
a "confissão" é vital terapia nessas horas. Foi duro... mas
você venceu mais
uma. Lava a cara, vai até a cozinha, enfia a colher nas
panelas, come um
pouco (afinal é preciso um pouco de sal pra pressão que caiu
há uma hora
atrás), se arrasta até o seu quarto e, se der tempo, se
lembra de entrar
debaixo das cobertas. Pronto. Enfim sós. Você, sua cama e a
fanfarra que
começou o ensaio geral dentro da sua cabeça. Mas a chave do
disjuntor sempre
cai depois de um tempo. Ai, tchau... Boa noite.

Oitavo Ato : O Dia Seguinte (grand finale).

Como passam rápidas as duas horas de sono (?) que você teve.
O despertador,
aquele digital, que tem o barulho mais insuportável de todos
lhe confirma
isso. Parece que foram apenas 15 minutos. Você dá um soco
nele. Ele se cala.
Depois de uns minutos ele dispara novamente, e assim o ciclo
do "não
acredito, eu nunca mais vou beber" se inicia. Se repete umas
dez vezes até
que seu perespírito lhe puxa da cama pro chuveiro. Você entra
debaixo da
água morna, relaxa, dorme mais uns quinze minutos. Acorda.
Sua testa está
marcada pelo relevo do azulejo. Vai pro quarto, se troca em
câmera lenta.
Vai até a cozinha, abre a geladeira sob o olhar reprovador e
conformado dos
demais. Abre uma coca-cola e dá uma golada que só termina na
última gota.
Olha pra eles. O arroto é inevitável e vem como o urro de um
gorila africano
no cio. É só vexame. Chega no trabalho duas horas e meia
atrasado. O chefe
olha pra você. Você diz "Bom dia" e o bafo de pinga impregna
o escritório.
Vai pra sua mesa, liga o micro, dá umas tecladas pra
disfarçar, põe o óculos
escuro e fica na posição número três do manual (cotovelo
sobre a mesa, mão
segurando o queixo, fingindo que está lendo seus emails.)

É sempre a mesma história.

E eu continuo com sono...

Ricardo Bonx bebe, fuma, não cheira e não conta mentiras. E
escreveu esse texto morrendo de sono.

Este texto foi transcrito de um email enviado por (quem mais?) Fernando Hugo.
É a nossa cara!

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