Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

segunda-feira, 21 de junho de 2004

A nudez dos corpos
(post originalmente escrito na sexta feira passada, às 17:20)



"Excess sadness laughs. Excess joy weeps.
The lust of the goat is God's generosity
The nakedness of women is the work of God"
William Blake, The Marriage of Heaven and Hell


A nudez dá medo à maioria de nós. Com nossas educações ainda tão tradicionais, em um mundo que muda tanto para permanecer igual, não sabemos ficar nus e expostos. Quantos de nós nunca tiveram pesadelos, nos anos de escola, em que nos víamos indo inadvertidamente nus para a escola? O que acontecia então nestes pesadelos? As pessoas riam, apontavam... ou elas apenas olhavam?

Porquê temos tanto medo de nossa própria nudez, para não dizer da nudez alheia também? Será uma dificuldade de dissociar a visão do corpo do ato sexual (e uma concomitante dificuldade de lidar com o próprio ato sexual)? Desde pequenos somos ensinados (ao menos eu fui) que devemos andar vestidos, não devemos olhar por fechaduras ou através de janelas enquanto os outros trocam suas roupas, não devemos declarar públicamente que preferíamos que nossa interlocutora estivesse nua. Mostrar seu corpo é um sinal de entrega ou desrespeito (já pagaram um bunda lelê pra você? é pior do que dar dedo...) ou desleixo, calculado ou não (olha lá o decote daquela mulher, será que ela não sacou que dá pra ver tudo?). Onde fomos parar, tão rápidos em nos vestir, lentos em nos despir e ansiosos pela nudez alheia?

William Blake dizia que "os bordéis são construídos com os tijolos da religião", e tinha bons motivos para afirmar isso. Nada torna tão necessária a profissão de puta quanto nossa sociedade tão preocupada com o que pode e ou não ser feito dentro ou fora de quatro paredes. Já consigo ouvir as vozes daqueles que dirão que "mas hoje em dia tudo virou uma putaria. é ridículo se falar em moralismo nestes tempos imorais". Grande merda dizem estas vozes. A "putaria" que se seguiu à revolução sexual dos anos sessenta é uma coisa extremamente moralista. Você precisa ter uma regra antes de quebrá-la, e nada pode causar maiores desastres do que as regras absurdas. Uma vez que recebemos frequentemente educações absurdas a respeito da nudez e do sexo, é impossível não quebrar as regras. E uma vez que você quebra as regras, ah, meu nego, você já fodeu com tudo e não tem volta.

Ouvi dizer que Adão e Eva andavam nus no paraíso. Ele, de boa, com seu bigulim balançando molenga entre as pernas sem se preocupar muito com o uso que daria para ele além de não molhar os joelhos ao mijar (não me admira que não tivessem filhos). Ela, feliz da vida, com sua xaninha arejada e livre de absorventes (estes sim que tornam as menstruações em pastas fedorentas de sangue podre, como me reafirmou uma bruxa querida) e roupas apertadas. Como devem glorificar os fabricantes de tecidos e revistas de mulher pelada esta tal maçã do conhecimento. O que seria a maçã do conhecimento? O que ela "ensinou" a nossos ancestrais proto-naturistas que fez com que tivessem tanta vergonha de suas "vergonhas"? Diz a bíblia (sim, eu conheço bem a bíblia) que ao comer a maçã, oferecida por aquela serpente que seria a primeira manifestação de satanás, nossos queridos Adão e Eva tomaram consciência de que estavam nus e que isso era feio. Agora, cá entre nós, se isso era feio, que mal gosto tinha o criador em não ter avisado isso para eles antes, não? Isso me cheira a uma reiterpretação mítica (que os intelectuais, do tipo que eu não sou, chamam de Midrash) da bíblia feita por aqueles monges sacaninhas da idade média. E assim chegamos ao ponto: A igreja.

Na Roma de Diocleciano (o tal imperador romano que, ao perceber que Roma estava, com o perdão do termo, na merda, resolveu adotar a religião da moda como religião oficial da quebrada, reinventando a "virada de casaca".), até onde me informam meus conhecimentos de história clássica, era moda ainda entre as mulheres usar suas togas pendendo apenas sobre um ombro, mantendo um seio exposto. Não que elas estivessem preocupadas de expor os dois, ou mesmo qualquer outra parte de seus corpos. Elas apenas achavam legal usar a roupa assim, era moda (e quem entende a moda?). Não era por isso que não podiam ser consideradas devotas, no entanto. A "moda" de dizer que a nudez era infernal (e que as mulheres carregavam o portão do inferno entre as pernas) surgiu alguns muitos anos depois. Talvez por que os homens, para variar, tem medo das mulheres e precisavam dar um jeito de injetar na filosofia popular a idéia de que as mulheres eram mesmo muito fodas e os homens muito bobos e que no fim as mulheres é que mandavam. E então, por medo da superioridade feminina, resolveram tomar medidas para diminuir ao máximo o poder das gostosas espertas romanas (e do resto do império cristão). Não adiantou muito. Você sempre pode tirar a roupa, entre quatro paredes ou não, e os portôes do inferno continuavam se abrindo, graças ao Bom Deus, para todos aqueles para quem já se abriam antes. A única diferença é que agora era feio se falar sobre o assunto, se mostrar publicamente o ato e se admitir que se gostava muito destas coisas. E assim a igreja católica apostólica romana inventou a putaria sobre a matéria prima que era apenas o desejo humano saudável (afinal todos sabemos que depressão da libido é uma desordem ligada ao estresse ou problemas psíquicos).

Depois deste agradável passeio pela história da putaria e hipocrisia romana, voltamos ao seio (oba) da questão. Por que é que hoje em dia, mesmo não sendo assim mais tão carolas, continuamos com toda esta distorção e este medo de nossos corpos e de nosso sexo? Medo é o caralho, diz a mesma vozinha que eu estava ouvindo antes. É, desta vez ela tem razão. Medo é o caralho. O medo é do caralho mesmo. É o medo que as mulheres são inspiradas a ter (e graças, novamente, ao Bom Deus e à Boa Deusa nem sempre aprendem) dos apetites masculinos e o enorme medo que os homens, estes portadores de, *ahem*, caralho, tem do poder que as mulheres podem ter sobre eles. A nudez, que já não é mais um tabu, continua sendo algo desconfortável para a maioria. Desconfio que isso seja, como disse, mais do que hábito. Talvez seja puro medo de se mostrar, seja no sentido literal ou simbólico. Somos todos uns mascarados com nossas roupas, nossos silêncios, nossas revistas de mulher pelada e nossas olhadas de lado, nossas lunetas, nossas palavras pouco agradáveis para as mulheres de bundas arredondadas e decotes generosos e nosso enorme medo de não sermos desejáveis o bastante por debaixo de nossas roupas.

Eu gosto do que é belo, e eu, a meu modo, sou um homem muito religioso. Minha adoração pela criação divina me leva a amar o céu da minha cidade, as árvores, os pássaros, os animais, os universos que existem dentro das pessoas, e a beleza de seus corpos. Sim, por que é tão diferente assim dizer "nossa, você tem lindos olhos" e dizer "puxa, seus seios são lindos"? Está na hora de ser mais sincero, despir-se um pouco de séculos de merda, e começar a pensar na sua relação com sua nudez. Eu gosto da beleza e da nudez, assim como você, e estou ficando cansado de ser considerado esquisito por causa disso. Voyeur e escoptófilo? Não. Eu sou humano, e você?

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