Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

quarta-feira, 16 de junho de 2004



de Daniel Carvalho

Abriu os olhos e ofuscou-se com o teto branco iluminado pelo sol. Sua boca amarga de acordar ainda guardava no fundo um sabor que remetia às boas lembranças da noite que passou. Olhou para os lados, reconhecendo onde estava, tentando rememorar a noite passada, e acreditar. A seu lado ressonava Elisa, com seu corpo miúdo e seios brancos ao sol cobertos parcialmente pelos cabelos negros. Não sabia o que sentir, mas não sabia se já sentira-se tão feliz. Uma felicidade que queria desfrutar pois sabia que tudo seria muito complicado dali em diante. Virou-se na cama e passou delicadamente sua mão sobre o ventre de Elisa até chegar aos pêlos macios de seu sexo, e então ali descansou. Cumprira na noite anterior um desejo secreto e agora aceitaria as conseqüências. O delicioso desejo que destrói os homens e as mulheres...
Talvez até gozasse de novo.

Vamos voltar aos dias anteriores, para que tudo faça mais sentido.

Thiago chega ao bar, como sempre, de mãos dadas a Mariana. Às vezes é difícil acreditar no contraste que há entre eles. Mariana tem a pele ligeiramente morena e olhos negros intensos. Suas sobrancelhas grossas sobre o rosto de boneca são emolduradas por seus cabelos negros e lisos de corte reto. Mariana usa roupas muito coloridas e adereços neon, piercings neon; é uma menina com um brilho próprio que parece se apagar aos poucos. Thiago tem os cabelos loiros e curtos e um rosto fino de onde fitam olhos muito azuis; seu sorriso constante de senhor da situação seduz ou irrita, dependendo do gosto de quem o vê. Usa uma jaqueta de couro com ombros largos sobre as roupas da moda que veste e anda sempre ereto. Thiago é tão irritantemente principesco quanto é vilanesco. Olha nos olhos de todos com quem fala como quem não tem nada a temer. É claro que ele sorri ao entrar no bar; seu andar é seguro. Mariana sorri ao aproximar-se da mesa, cumprimenta Felipe, Bárbara e Elisa e senta-se. Thiago permanece de pé com a mão postada sobre o ombro de Mariana enquanto cumprimenta os amigos, os garçons, acena à distância para os conhecidos em outras mesas, como um rei chegando a um banquete.

Elisa é irmã de Felipe, que namora com Bárbara. Tem os cabelos negros e longos formando uma cachoeira sobre os ombros brancos. Seus olhos são de um castanho muito claro enquanto os de seu irmão são de um azul turvo. Seu corpo pequeno quase não cabe em suas calças jeans de felicidade por ser tão perfeito. Tanto ela quanto o irmão sorriem. Bárbara lança um ariano olhar de desagrado para Thiago e sorri para Mariana. É fácil gostar de Mariana quando se começa a conhecê-la. Bárbara detesta Thiago mesmo não o conhecendo.

A noite é muito divertida, para Thiago. Ele está feliz pela namorada que tem, pelos amigos que acha que tem, pela sua popularidade e pelo simples fato de existir. Bem, na verdade apenas os três primeiros motivos sejam verdadeiros. Bárbara não consegue entender o que Mariana está fazendo alí, com Thiago, recebendo tão pouca atenção. Eu acho que eu também não entenderia, se não soubesse que era apenas solidão.

Ao final da noite, despedem-se. Thiago leva Mariana pela mão, principesco como chegara, rumo a seu carro tão querido. Felipe e Bárbara seguem suas vidas, ainda um pouco abalados pela tentativa de suicídio de um amigo. Elisa permanece sentada, com um leve sorriso no rosto. Algumas horas, pessoas e cervejas passam pela mesa de Elisa então. Não muitas, de fato, antes que Thiago apareça novamente no bar, sozinho, e a conduza com o mesmo ar triunfante até o seu carro tão querido. Mariana agora está em casa, dormindo ou não conseguindo dormir. Isso não importa tanto assim para eles.

O carro (tão querido) está parado sob um bloco qualquer da Asa Sul. Não importa qual, nem onde, pois o que importa é que está escuro o bastante para que possam foder bem escondidos. Abaixo das janelas que dormem, dos moradores que talvez durmam, dos blocos solitários na escuridão, Thiago triunfa duas ou três vezes com a anuência deliciada de Elisa. Esta é a vida de Thiago hoje. Muito mais ter do que ser, muito mais parecer do que ser. É foda.

Esta noite, e esta história até agora, não é muito diferente daquelas que se repetem depois desta, e daquelas que aconteciam antes. Thiago com suas duas, ou mais, mulheres. Elisa prendendo em sua teia mais um homem que fode bem, o que é uma boa coisa para e ter por perto. No fundo ela gosta mesmo é de mulheres. Mulheres que sejam fortes e frágeis e que entendam isso. Então neste ponto o acordo entre ela e Thiago é perfeito: mulheres são ótimas, uma boa foda é sempre bom. Enquanto isso Mariana dorme, ou não.

Felipe já estava dormindo, talvez sonhasse, quando o telefone tocou. O sono relutava em largar seu corpo, mas por fim foi vencido por tempo o bastante para que Felipe levasse o celular até o ouvido e murmurasse algo semelhante a um "Alô". Mariana chorava do outro lado da linha. Felipe despertou com o som, tentando encontrar algo melhor a dizer enquanto desfiava lugares comuns ao telefone, daqueles que se diz quando alguém começa a chorar na sua frente. Mariana, entre um soluço e outro, com a voz mais baixa do que nunca, rasgada por soluços, perguntava se era verdade. Felipe tentava ganhar tempo perguntando do que ela falava. No fundo ele sabia, há dias ele já sabia das noites (e algumas tardes) de Thiago com sua irmã, e isso também doía em seu coração esteticamente sensível à dor alheia. Mariana havia acordado, e pelo ruído de alguém pegando a extensão da linha em outro quarto, Elisa também.

Três dias antes Felipe e Thiago tomavam uma cerveja no postinho da Universidade de Brasília. Eram raros os momentos em que as janelas em suas agendas se encontravam, e naquele momento brindavam à vida. Felipe geralmente preferia manter os olhos fechados aos problemas e atos alheios, mas neste dia, ao saber da história de Thiago com sua irmã, resolveu falar. Thiago, com um sorriso absurdamente safado, apenas escutava. "Thiagão, você está acostumado a vencer, mas a vida às vezes nos surpreende, cara. A gente tem que esperar da vida mesmo aquilo que é mais absolutamente inesperado. Eu sei que você está se achando muito foda, mas foda é isso que você está fazendo com a Mári.". Thiago apenas sorria, dizendo entredentes "Exatamente véi. É foda.". Ele mal sabia o que a vida tinha reservado para partir este sorriso guloso.

Elisa quase interrompeu a sexta entoação chorosa da pergunta de Mariana ao telefone ao dizer "É verdade, minha linda". As três vozes fizeram um silêncio que parecia ser feito de cacos pontiagudos de ilusões e ter durado semanas ou meses. Os soluços sem palavras de Mariana de seu lado da linha interromperam este silêncio, finalmente. Felipe não sabia o que dizer, e apenas ficou calado. Elisa continuou ronronando ao telefone, dizendo a Mariana que precisavam se encontrar; só elas duas. Felipe apenas desligou o telefone respeitosamente depois de servir de audiência para o acerto de tão absurdo encontro. Ao deitar a cabeça no travesseiro lembrou-se das palavras que dissera a Thiago, sorriu levemente pela dimensão da ironia da situação e tentou voltar a seus sonhos. Mariana não dormiu, entre os fragmentos irrecuperáveis de seu aparelho telefonônico e de suas ilusões.

O Beirute estava vazio assim como os olhos de Mariana. Ela não costumava fumar, mas aceitou os cigarros e as palavras de Elisa. Esta dizia que a princípio não conhecia Mariana, que a princípio estava tudo bem assim, mas que conforme a conhecera começara a achar tudo aquilo uma grande sacanagem. Bem, sacanagem foi desde o princípio a palavra mais adequada para aquilo, mas ninguém fez este comentário ali. Entre lágrimas que apostavam corrida em suas faces, Mariana não sabia o que dizer e nem o que fazer. Começara a relação com o disputado Thiago logo após terminar dolorosamente com Rodrigo, talvez fosse por solidão, como eu disse, mas gostava de acreditar que estava por ele apaixonada. A dor que sentia neste momento não necessitava de absolutamente nenhum esforço de crença. Ela estava sofrendo de novo. Elisa pagou a conta e conduziu Mariana até seu carro de dali para outro lugar. Afinal, esta era a 109. Esta era a noite.

Já estavam na segunda garrafa de vinho e já haviam pedido o segundo maço de cigarros. Sentadas em duas cadeiras do mesmo lado da mesa, ligeiramente bêbadas, Elisa e Mariana conversavam agora em outro tom. Por uma noite o vinho lavara do peito de Mariana as suas dores, e agora ela conversava, quase confidenciava, com Elisa. Sabia das preferências da linda irmã de Felipe e deixara escapar sua curiosidade em também experimentar. Deixara escapar também um ou dois elogios sobre a beleza e natureza encantadora de Elisa, e ouvira alguns elogios também, que aqueceram seu coração ainda mais que o vinho. Por fim se beijaram longa e delicadamente enquanto a garçonete deixava discretamente o segundo maço de cigarros sobre a mesa. Nas outras mesas do território protegido do Cat's Café ninguém se impressionou com as duas jovens que se beijavam. De fato cenas muito parecidas, talvez sem a mesma ternura, aconteciam em outras mesas naquele exato momento. Ali, deixando para trás o desamor e o tabu, Mariana havia encontrado alguma justiça e alívio para seu coração.

E agora sim...

Mariana abriu os olhos e ofuscou-se com o teto branco iluminado pelo sol. Sua boca amarga de acordar ainda guardava no fundo um sabor que remetia às boas lembranças da noite que passou. Olhou para os lados, reconhecendo onde estava, tentando rememorar a noite passada, e acreditar. A seu lado ressonava Elisa, com seu corpo miúdo e seios brancos ao sol cobertos parcialmente pelos cabelos negros. Não sabia o que sentir, mas não sabia se já sentira-se tão feliz. Uma felicidade que queria desfrutar pois sabia que tudo seria muito complicado dali em diante. Virou-se na cama e passou delicadamente sua mão sobre o ventre de Elisa até chegar aos pêlos macios de seu sexo, e então ali descansou. Cumprira na noite anterior um desejo secreto e agora aceitaria as conseqüências. O delicioso desejo que destrói os homens e as mulheres...
Talvez até gozasse de novo.

Felipe sabia o que acontecera naquele quarto. Nunca antes Elisa havia trazido uma mulher para casa, mas ele sabia muito bem o que acontecera depois que elas chegaram. De qualquer forma não queria estar ali quando elas saíssem do quarto. Queria deixá-las sozinhas, e também queria estar longe dali para não ter que se envolver com a situação. Fechou a porta silenciosamente ao sair, de casa e desta parte da história, rumo à casa de Bárbara.

Elisa e Mariana riam e brincavam na cozinha. Há muito tempo Mariana não sentia-se tão leve. Até mesmo um café da manhã tardio era divertido junto a Elisa, e Mariana sabia que podia se apaixonar. Sabia que podia se apaixonar por aquela mulher. Não podia tirar os olhos dela enquanto discutiam, entre torradas com manteiga ou geléia e copos enormes da vitamina que haviam inventado, sobre o que fariam agora a respeito da improvável figura responsável por aquela improvável união. Em meio aos raios de sol que pareciam sorrir pelos cobogós da cozinha discutiam divertidamente o destino de Thiago, o que acabava decidindo nas entrelinhas o destino delas mesmas. Quando Elisa deixou Mariana na entrada de sua quadra, beijaram-se com a paixão de quem sela uma promessa de amante. Mariana flutuava sobre o chão quando chegou em casa. Não sentia-se mais, de forma alguma, sozinha.

O sorriso de Thiago era o mesmo enquanto esperava, sentado ao lado de Mariana em uma mesa do Estação 109, pela chegada de Felipe, Bárbara e Elisa. O rosto de Mariana sim havia mudado. Havia nele um sorriso enigmático e seus olhos tinham novamente aquela força. Talvez Thiago tenha percebido, mas preferiu se ocupar de olhar para si mesmo, como de costume, refletido em todos os seus inumeráveis conhecidos que flanavam pelo bar. Elisa despontou na pequena escada que separa o bar da calçada e sorria para mesa durante todo o percurso. Thiago retribuiu o sorriso com sua habitual face de prazer por ser quem é. Mariana apenas retribuiu o sorriso.
- "O Felipe foi com a Bárbara para outro lugar" disse Elisa enquanto sentava-se de frente para o casal na pequena mesa quadrada.
- "Tá de boa" disse Thiago. "Então somos só nós hoje."
- "Exatamente", sorriu Elisa. Mariana apenas sorriu.
- "A 'nove' tá meio vazia hoje..." disse, casualmente, Thiago enquanto Elisa e Mariana continuavam sorrindo uma para a outra, olhos nos olhos, na assinatura de sua conspiração.
- "A sua... namorada... é maravilhosa, Thiago..." disse, pausadamente, Elisa.
Silêncio. Thiago esconde a perplexidade por detrás do sorriso que desbota.
- "Acho que você nem sabe o quanto" diz por fim, Thiago, em um elogio quase ensaiado, mais para se gabar do que para elevar Mariana.
- "Sim eu sei." Elisa responde no mesmo tom pausado, enquanto estende sua mão para segurar a de Mariana. As duas mãos se encontram logo acima do gargalo da garrafa de Bohemia. Mariana se levanta e senta-se ao lado de Elisa, ainda segurando sua mão, com o sorriso mais enigmático que Thiago já vira em seu rosto. Elisa passa a mão pelo ombro de Mariana enquanto esta se ajeita na cadeira e as duas, cúmplices, deliciam-se com o efeito causado pelo início de seu ato ensaiado. Thiago iria dizer alguma coisa, mas Mariana o calou:
- "A sua... ex namorada também sabe o quanto a sua ex amante é maravilhosa."
O sorriso de Thiago, que já se desmanchara, dá lugar a um queixo caído sob uma boca por onde parecia escorrer o orgulho de toda uma vida, todo ao mesmo tempo.
- "Vem cá" sussurrou Elisa para Mariana, ainda alto o bastante para que Thiago pudesse ouvir.
Agora faltava o golpe final. Beijaram-se com toda a paixão que puderam, e ainda com mais alguma trazida pelo momento de triunfo. O bar, com o olhar chocado de Thiago e as pessoas olhando nas outras mesas e o cara apontando impressionado por trás do balcão parecia ter sido congelado por um instante, como se aquelas bocas, aquelas línguas, tivessem dentro de si o tempo e todo o resto do mundo e o dividissem naquele momento. Quando finalmente o beijo terminou, com um epílogo de dois selinhos leves e estalados, voltaram a fitar sorridentes e róseas um Thiago que parecia ter esquecido que tinha um rosto, tamanha a sua confusão. E então, para despertar o príncipe derrotado, Elisa apenas precisou retirar a espada que haviam cravado com arte e tesão em seu orgulho:
- "Vai embora Thiago, já basta o bar inteiro segurando vela aqui."
O príncipe bateu em retirada. O golpe havia sido tão forte que todo o orgulho e mesmo toda a covardia que poderiam levá-lo a tentar qualquer coisa estúpida contra as duas havia sido sangrado, ao menos naquela noite. Tudo que restava-lhe agora era o seu carro querido, que certamente o levaria para casa.

Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração...

... mesmo que seja uma vingança, ou se permitir fazer o que quer que seja.

Da traição à vingança o caminho é uma estrada muito velha e conhecida. Quando você faz alguém sofrer, não parece compreensível que também sofra em algum momento? Talvez a vingança seja um tabu tão grande quanto a traição, tão grande quanto o tesão e carinho de Mariana e Elisa. Mas nossa vida é mesmo cheia de tabus, e nenhum deles importa agora, talvez. Ao menos alguma coisa boa havia acontecido ali. Ao menos nesta noite, e ao longo de mais alguns dias e noites, Mariana sentira-se feliz. Já Elisa, que sempre se divertia a qualquer custo, estava apenas rindo mais uma vez no final da história. Este seria todo o problema depois, mas isto fica para depois. Em uma noite como aquela o tabu é falar sobre o depois.


Esta é uma história brasiliense
escrita com amor


Escrever é minha redenção e meu ofício.
O que acharam?

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