Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2005

A moça acenando na janela
Um novo conto de Daniel Duende

Ela não conseguiu parar de chorar quando o taxi parou em frente ao aeroporto. Suas costas ainda estavam arranhadas da última vez que a chupara. Seu coração apertado pelo adeus torto, farpado, que disseram. Foram do céu ao chão seco, como um avião em queda desastrosa, em duas horas. E agora, para seu desespero, ela estava indo embora. Ela, que ela amava, e ela que amava, estavam indo embora uma da outra. A vida não é fácil para quem abre seu coração. E, em meio a tudo isso, agora ela teria que pegar o avião...

Não tinha certeza de ter dado a quantia certa em dinheiro para o taxista. Não se importava. O ruído das turbinas que preenchia o aeroporto Santos Dummont naquela manhã era aveludado e estranho, qual veludo mofado, em seus ouvidos entorpecidos de saudade e confusão. Agora que o laço parecia se afrouxar e soltar violentamente, agora que elas não estavam mais juntas, ela não estava mais em lugar algum...

Tentou enxugar as lágrimas enquanto empurrava o carrinho com pouca bagagem e muitas lembranças. As pessoas olhavam para ela com curiosidade e espanto. Todo mundo já chorou na vida. Mesmo assim alguns parecem ainda se assustar com isso. AS pessoas ditas normais são mesmo as mais loucas.

Tentou se recompor, com mais sucesso desta vez, quando chegou a sua vez na fila de embarque. Não havia bagagem a despachar. Carregaria suas coisas nas mãos, como carregava toda a histórias delas duas no coração. Com a anuência de um fiscal de embarque que a fitava cheio de pena confusa, embarcou no avião.

Os ruídos do interior de uma aeronave são quase um silêncio. São sons como os que devem ouvir os bebês nas barrigas de suas mães. Aboletada em sua cadeira à janela do avião ela quase sentia-se confortável e aconchegada. Seu coração ainda pesado batia devagar e ela observava pela janela a movimentação da pista. Não chorava e não sorria naquele útero de metal. Apenas ouvia, absorvida pelo vazio, os ruídos de seus companheiros de gestação aérea e fitava a janela. E se ela, aquela que ela amava, estivesse no aeroporto agora procurando por ela para pedir perdão e declarar seu amor? Seu coração disparou com este pensamento.

Seus olhos vasculhavam agora, frenéticos, as janelas do aeroporto distante. Entre as crianças que acenavam, entre as mulheres e homens, amados ou não, que observavam, procurava pela figura morena e miúda da amada que deixava agora de má vontade, com o coração partido. Por vezes acreditava esperançosa vê-la em algum rosto que logo percebia, não ser o dela. Chegou a acenar uma ou duas vezes para um ou dois destes insuspeitos enganos. Seu coração começava a acelerar na ansiedade humana e ridícula de que poderia estar agora mesmo sendo observada pela mulher que amava.

Então o avião começou a se mover. A trepidação e o ruído das turbinas que se ligavam arrancou-a de seu transe esperançoso. Por um segundo esteve a beira de gritar para que aquele avião parasse, para que ela pudesse descer e procurar sua amada. Algo dentro dela a conteve e a fez sentir-se ridícula. É claro que ela não estaria lá embaixo. Não depois daquela briga. Não depois das coisas que foram ditas. Não depois da forma como ela fora embora daquela casa no Jardim Botânico, chorando no taxi e despencando de seu sonho, mas irresoluta em não voltar atrás. Toda a resolução se dissolvia frente a esperança de ver novamente sua amada. E foi então nesta angústia silenciosa que ela foi impelida aos céus dentro daquela ave metálica prenhe de vidas como as dela, ou completamente diferentes, rumo à sua cidade solitária.

Maria estava anestesiada enquanto caminhava da porta do taxi até a sua casa. Repassara na cabeça durante toda a viagem a história de amor que tivera com aquela mulher menina que lhe fora tão familiar e estranha ao mesmo tempo. Ligara quase que automaticamente o seu celular pouco antes de abrir a porta. Quando o celular emitiu o sinal de mensagem de voz recebida, foi um dos sons mais belos que ela já havia ouvido em sua vida. Por segundos, enquanto apertava nervosa os botões do aparelho para ouvir a mensagem, ela teve esperança de que o seu destino mudasse. Mas tratava-se apenas de um amigo perguntando se ela já chegara à cidade. Como a vida podia ser cruel em suas brincadeiras...

foto cedida por Julia, outra moça que acena na janelaJá era tarde da noite quando o celular tocou. Maria estivera, desde que chegara a seu pequeno apartamento, sentada á janela fitando, vazia, a rua. Suas valises jogadas sobre a cama, cobertas pela roupa com a qual viajara. Os cigarros se amontoavam no cinzeiro e as lágrimas secavam em seus olhos e seus seios nus. A vida de Maria parecia terrívelmente vazia quando o som eletrônico cortou a noite. Pulou, como uma gata, sobre o aparelho que chamava de cima da cama atendeu a chamada deitada sobre a bagunça. Do outro lado a voz era familiar, muito familiar. Ela dizia "Eu estava lá no aeroporto acenando para você, rezando para que você por algum motivo descesse daquele avião. Volta!"

Depois de desligar o telefone Maria foi até a janela, nua como estava, sem se importar com mais nada no mundo, e acenou para o céu. Acenou para as estrelas como se acenasse de volta para sua amada. Mesmo ainda a sangrar pelas dores do dia, da vida, seu coração batia forte. Assim são as coisas do amor.

Lá em algum lugar na rua eu observava, perdido em meus pensamentos, aquela moça bonita e nua acenando para o céu e pensei comigo mesmo sobre a beleza que existe na vida.




e é isso.

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