Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005

Melhores Venenos
(um conto sobre vícios)

Cerveja gelada e cigarros, uma amiga ruiva e bem disposta, sexta-feira, uma mesa de bar. Érico sentia-se bem o bastante, não podia reclamar. Virava-se para os lados rapidamente para sorver o momento à sua volta, e então voltava a debruçar-se na conversa que não interessava. Trocava palavras sem pensar nelas, concentrava-se nos olhos de Selma, nos seios de Selma, virava os olhos para longe do vazio. Tragou seu cigarro, passou a mão no cabelo eriçado e pediu a conta.
- "vamos para outro lugar?"
- "bora!".
E assim começou a noite.

Deslizaram um pouco pela cidade enquanto aumentavam a vontade, e então pararam sob um bloco qualquer da quadra de Selma para se conhecerem melhor. Érico fingia, evidentemente, estar interessado no que Selma tinha a dizer, e esta retribuia o fingimento. Foi com alívio que resolveram parar com a piada e se atracaram, alguns minutos depois. Èrico abria com urgência os botões da blusa de Selma. Selma enfiava, aflita, a mão dentro da calça de Érico. Havia uma urgência de como se não houvesse tempo a perder. Era como se matassem uma fome, ou tentassem estancar um sangramento. Era como se fosse um remédio, um placebo, para uma dor antiga. E então terminou sem deixar vestígios. Selma foi para sua casa, após se despedir e se certificar de ouvir com um sorriso a promessa de telefonemas de Érico. É claro que trocariam telefonemas assim que a fome aumentasse. E era isso.

Érico chegou em casa pouco antes do nascer do sol e jogou o casaco sobre a primeira cadeira de seu apartamento, como fazia sempre. Abriu a geladeira e pegou a última cerveja. Com um pouco de sorte não estaria choca. Sentou-se à varanda e acendeu um cigarro, olhando fixamente para o ponto de ônibus. Aos poucos o céu começava a clarear, encontrando Érico, estatuesco, sentado à varanda olhando para aquele ponto de ônibus. Nâo sorria, nem sequer pensava em Selma, ou em Luíza, ou em cerveja, ou em qualquer outra coisa. Acendia cigarro após cigarro e apenas ficava ali, com os primeiros raios de sol refletindo nas vidraças.

E foi então que ela veio. Delgada e sonolenta, a cruzar a rua. Seus passos no asfalto eram sem vontade, seu casaco alaranjado sobre o uniforme como um velho amigo sonolento. Érico debruçou-se na varanda e olhou, tentando conter, como sempre, as lágrimas. Lá estava Elisa, e eles não estavam mais juntos há muito tempo. Algumas vezes ela olhava para cima e desviava o olhar. Algumas vezes ele se sentia estúpido e ia embora antes que ela chegasse ao ponto de ônibus. Algumas vezes, como esta, ele apenas ficava ali. Certa vez ele ficou quase um mês sem aparecer naquela varanda para ver aquela que um dia confessara ao mundo amar cruzar a rua e pegar aquele ônibus. Foi a única vez que ela ligou dizendo que tinha saudades dele. Encontraram-se e beijaram-se como nos velhos tempos, e então nada deu certo, como nos velhos tempos. Em dor renovada se separaram. Desde então Érico não mais a procurou, nem ela o fez. Apenas se sentava, sempre que podia, àquela varanda, e olhava ela chegar, fingir que não o via, e ir embora. Era o pior de seus vícios. Era o seu doce veneno, e o matava um pouco dia a dia.

Este era o único momento em que Érico sentia-se vivo.

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