Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2004

De que valeria um horror que não choca?

Quando foi lançado, o RPG Vampire: the Masquerade (Mark Rein*Haggen, editado pela Whit Wolf Gaming Studios) era a promessa de uma verdadeira nova geração de sistemas e histórias baseadas em temas adultos de horror e frenesi. Alguns grandes nomes do horror e da literatura frenética abençoaram o jogo. E, então, alguém dentro da White Wolf resolveu que o jogo deveria agradar "um pouco mais" ao péblico geral. Levou pouco tempo para que a proposta original do sistema se perdesse (e o gênio Mark Rein*Haggen desaparecesse). Foi nessa época que eu desisti do vampire. Mas, ultimamente, lendo as tentativas corajosas de se revitalizar o sistema, voltando à sua idéia original, recuperei o meu tesão pela história. Vale a pena dar uma olhada neste texto do Rob Hatch (do qual reproduzo um trecho logo abaixo).

"...I'll be honest here: I don't think VAMPIRE: THE MASQUERADE should be an entirely comfortable roleplaying experience. The game was originally designed to be an edgy, adult-oriented alternative (pardon the overused MTV-ism) to what was already out there. While my bank account and I are grateful for WW's popularity in our industry, I sometimes wonder if we've lost our willingness to experiment and take risks - if VAMPIRE's become less of a horror-story simulation and more like D&D with sunglasses.

Shouldn't be that way, in my opinion. We've already got D&D - and CHAMPIONS, and SHADOWRUN, and a lot of other games out there offering lighter, less controversial fare. If children want to jump on the White Wolf bandwagon - or hearse, if you will - more power to 'em, if their parents don't mind. But that's not the audience to whom the game should cater.

Thus the "GAMES FOR MATURE MINDS" and "SUGGESTED FOR MATURE READERS" logos on ALL our products; thus the disclaimers scattered hither and yon throughout the books. This is not "The Storytelling Game of Superheroes with Fangs." You're a monster, and you feed on the blood of the living. Unpleasant stuff, and I think sanitizing such things does them a disservice. (Which is more "obscene" - The Revolting Revenant, or a VAMPIRE player diluting an act of murder down to the level of "OK, I attack the bum and recharge my Blood Pool"?)"

-- Rob Hatch, um dos designers do RPG Vampire: the Masquerade, a respeito da controvérsia causada pelos complementos de sistema de sua autoria, considerados "adultos" e "chocantes" demais. Com Rob Hatch na WW e Rein*Haggen ainda vivo, sempre haverá esperança para o RPG.

Esta é uma discussão um bocado específica, eu sei. Interessa apenas aos interessados em Role Playing Games e literatura de horror (de qualidade) e de ficção científica (o que quer dizer William Gibson e companhia frenética, para quem não sabe). Mas o tema que ele toca é muito mais amplo. É a questão contemporânea da esterilização da arte e da expressão em prol da comercializabilidade (não me importa se inventei a palavra) da produção artística e outros interesses pouco ligados à qualidade e intensidade da obra.

Isso é algo que acontece quando Tim Burton filma Batman e distorce toda a estética (e coloca o idiota do Keaton, seu amante da época) para fazer o papel do grande morcego. Acontece quando boas bandas do cenário alternativo viram fabriquetas de baladinhas fáceis ao ingressar no hall da fama da MTV. Acontece quando bons textos de horror e ficção científica só existem em fanzines, publicações alternativas e mídia digital (abençoados pelos deuses sejam estas 3 mídias) enquanto a grande indústria de publicação se preocupa se seus leitores cristãos, adequados e pretensamente sensíveis (meras caixas de reações pré-estabelecidas) não vão ficar chocados e mexidos demais com este ou aquele "produto" artístico.

RPG, assim como cinema, não é unicamente uma atividade infanto-juvenil. Alinhei estas duas formas de expressão artística propositalmente pois é muito fácil, quase óbvio, afirmar isso sobre o cinema. Mas o RPG, muitas vezes por culpa da própria indústria medrosa e adequada que o produz e dos próprios jogadores que falham em perceber suas possibilidades mais profundas e intensas, sofre ainda a etiquetação de "coisa de adolescente". Não deveria ser assim. Não foi assim quando surgiu o Vampire: the Masquerade e, a bem da justiça, já não era assim muito antes disso. Muitos sistemas e universos simbólicos de RPG foram pensados, colaborativamente criados e experienciados numa esfera muito maior do que a mera diversão juvenil desde muito antes do Vampire. O que aconteceu então? A mesma coisa que acontece com a música e com a literatura...
É mais fácil não ousar, seguir pelos caminhos conhecidos, e vender muito para um público fiel por sua falta de criatividade do que ousar e se arriscar a chocar este mesmo público.

Quando a atmosfera de horror pessoal de um de meus sistemas prediletos de RPG dissipou-se em prol das batalhas de poder (e outros delírios fálicos), alguma coisa importante se perdeu. Quando o foco na interpretação de uma pessoa transformada em um monstro que vive da morte do outro foi substituida pela tentativa rasa de interpretação de uma máquina de destruição sem objetivos ou sentimentos, alguma coisa se perdeu. Como disse Rob Hatch, já temos outros sistemas, blockbusters em seu próprio modo, que enfocam a por vezes entediante repetição de matar, ficar mais poderoso, matar um adversário mais poderoso. Isso é um retrato de nosso mundo, a seu modo. Sinto falta da profundidade que se perdeu quando o Vampire se torna mais um destes sistemas.

Estou em busca da verdadeira experiência de interpretação, como Rein*Haggen a pensou... como eu a pensei desde o dia em que descobri o RPG. Aquela experiência de perguntar-se "como é que eu me sentiria nesta situação? como é que meu personagem, sendo quem é, se sente nesta situação?". Uma experimentação, uma reflexão e sobretudo um contar de uma história que tem valor próprio. Estas são as coisas que se perdem quando um rpg de horror pessoal se transforma em mais um rpg de poder pessoal. É atra? destas coisas que eu e vários outros jogadores, fãs do velho vampire, estão atrás.

Em homenagem a tudo isso, resolvi começar uma nova crônica de Vampire, utilizando as regras originais de Rein*Haggen (sim, ainda tenho um exemplar surrado do velho livro que começa com a carta de V.T. a M.H.). Vamos ver no que dá...

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