Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

visões dissolvidas num monitor desligado
ficção para seus sentidos, de Daniel Padua

"Chove contra a janela. O suficiente pra alagar o quarto, se eu a deixasse aberta.
Como naqueles filmes empolgantes de pirata, onde o céu fica mais cinza quando um saque
acontece em alto-mar.

Mas aqui, no silêncio abafado do apartamento vazio, apenas ouço a chuva precipitar de lá enquanto
diversos sentimentos precipitam de cá. A resignação doída diante da precariedade em que eu me
encontro - foi o que consegui, ao deixar a Rede. Depois, a saudade de poder avacalhar com a seriedade
das coisas, como quem corre na chuva só para se divertir, vencendo o poder de um céu inteiro. E enfim,
o medo de retomar a trilha - penso em recomeçar a caminhada, mas sucumbo à frustração de estar só
e distante do que um dia já vivi... e perdi.

Porém, de certa maneira, há um canto sendo entoado pelas nuvens. Uma energia no ar, que eu sequer
recordava a existência (refrão de música), e vem eletrificando meus sentidos (Bzzzéeeu!). Minha memória
jorra relances e recortes de uma época agitada e feliz (tchururu!)...pessoas num vale, casas de barro, cataventos
enormes e placas negras sob o sol, árvores viçosas e muitas crianças em torno de engenhocas repletas de botões.
Uma mulher desenha esquemas que dançam e se misturam num papel, como se estivessem se fundindo.
Um pequeno lago, do qual subiam torres tubulares nas quais um velho desenhava peixes e pessoas...
e acima deles cordas compridas nas quais deslizavam carrinhos, muitos deles, indo e vindo de várias direções.
As pessoas sorridentes, e ao fundo, música. Acordes enlouquecidos de uma guitarra tocada por Hendrix.
Numa parede beeeeem alta, a figura feminina enorme de Maina ia sendo decorada, com penas, panos, placas e
pinos. A comemoração sendo preparada... homens martelavam cipós enquanto garotos encenavas personagens sob
as árvores... era a vida no Vale da Partilha. Como era antes de perdermos o direito de usar aquelas estruturas.
Por um instante dói... era melhor dormir no saco de dormir feito com lona de guarda-chuva e espuma catada
do que nessa cama comprada em 36 parcelas de um dinheiro. Fazíamos esculturas quântica da vida, com calda
de caramelo.

O que eu posso fazer? Os fanáticos das "Células de Cristo" começaram a importunar as residências de
"hereges" usando transmissores reciclados pelos quais enviavam 24 horas de leitura da Bíblia Sagrada.
"Tá amarrado em nome de Jesus FM! É só sucesso!". Algumas congregações se especializaram em
implementar remixes dos dispositivos para a "Guerra da Palavra". Quando o governo tentou agir e autuar
congregações, a juventude das células ocupou as ruas e muitas demandas se misturaram. Favelados de todas
as partes se uniram ao movimento e o Estado viu-se diante de dois caminhos: a Guerra Civil ou a
condução de um novo projeto de integração social que minimamente permitisse a tolerância à diversidade
e trouxesse a sensação de distribuição mais igualitária da riqueza. Dessa forma, fizeram um pacotão.
Repensaram a maneira de registrar os indivíduos desta sociedade e articulá-los numa teia econômica,
possibilitando a todos acompanhar o desempenho uns dos outros. Além disso, deveria ser possível
interações prévias, à distância, para fins de consulta de interesses comuns. Uma grande campanha
envolvendo mídia e escolas conseguiram, em dois anos, convenceu a população do valor da proposta.
E o grande eixo viabilizador do projeto seria a unificação das redes de crédito, sob a coordenação
tecnológica do Estado. Para tanto, aprovaram uma lei... a "maldita", como dizíamos... que permitia
a fiscalização e controle dos padrões tecnológicos das chamadas "indústrias de base", como forma
de impedir a disseminação de redes comerciais incompatíveis com a rede de crédito integrado, ou simplesmente Rede.

Foi a Lei de Controle de Transformações Industriais e seu escritório de fiscalização, a ECOTi, que mais parece polícia,
o que inviabilizou lugares como o Vale da Partilha. O governo ganha muito com os impostos da Federação Industrial e
seu jogo mafioso, e os deu mais autonomia fiscal do que poderiam sonhar. Por sermos observados há tempos,
não demorou até que uma "Indústria do Conhecimento" fosse declarada como de base, e por isso sujeita à Lei.
Por mais que tentássemos resistir, não havia como lutar sem cair na marginalidade. A ECOTi tem hoje participação
até nas associações de bairro, e meus vizinhos terão prazer em marcar negativamente meus índices caso
eu pareça um cidadão menos entretido com a Rede do que eles...

E sim, ela levou a uma comodidade sem precedentes...
Cada pessoa registrada no nascimento ganha um cartão-chip. Até os mais miseráveis têm índices nela.
Não restaram muitas pessoas interessadas em enfrentar tantas dificuldades para cultivar um sistema mais aberto...
os poucos que não foram perseguidos e processados estão calados ou em outros cantos, num isolamento geográfico
que soa como piada para a maioria. Há nos corações um temor por manchar seus índices... inclusive muitas congregações
religiosas passaram a acompanhar os índices de seus fiéis, em vista do que houve na "Guerra da Palavra".
Depois destes longos anos, a sociedade tornou-se uma rede moderada pelo Estado representativo, e megacorporações viraram "benfeitoras"
cooperando e subsidiando desenvolvedores e aplicações sobre a tecnologia do backbone da Rede, permitindo a não-cobrança para aderir e ter
seu cartão-chip. Utilizando os índices pessoais, montaram loterias, sorteios, bonificações... alguns idosos sobrevivem
só com prêmios pelo seu "bom comportamento consumidor" ao longo da vida. Sem falar dos jogos coletivos organizados
pelos próprios cidadãos, que atraem mais atenção que as TVs em sua época gloriosa. Mas mesmo nos serviços onde pode-se
criar um "personagem" para interagir na Rede, somos obrigados a fornecer o cartão-chip verdadeiro. "Toda movimentação
tem de ser transparente na Rede, para que haja convivência honesta." Para piorar a situação, a Rede é internacional.
Países que antigamente defendiam a independência econômica viram na centralização dos índices pessoais uma maneira de articular
mais dinamicamente o bem-estar social. Hoje, há um bloco econômico transnacional integrado pela Rede, de fato.
O conceito de cidadania transnacional foi buscado com afinco para evitar duplicidade de identidade,
e o turismo mais do que nunca foi desenvolvido. Rápidas articulações e doações na Rede levantam dinheiro
suficiente para sustentar muitas pessoas sem renda. Em alguns lugares, até os mendigos sumiram.

É, sem dúvida, um mundo mais fácil de administrar que o da antiga democracia, e satisfaz à maioria das pessoas.
Livros recentes como o "Plataforma do Conforto" exaltam a centralização da identidade cidadã através da tecnologia
cooperativa e integrada de comércio em rede como o "princípio da humanidade unida" e o "caminho do meio
das nações". É como um Belle Époque descrito por William Gibson.

Então... o que eu posso fazer? O que eu devo fazer? Aliás, porque sinto que há coisas erradas?

Observo meu sentimento e tenho medo de estar apenas extravazando um desejo vazio de subversão.
Se todos estão felizes, porque eu não estou também?
Porque eu não consigo conviver numa sociedade integrada e até mais simples?
Porque eu sinto falta de revirar o lixão da cidade para encontrar adereços para a balsa no Vale da Partilha?

A chuva cai densa. Observo meu cartão-chip sobre a escrivaninha e decido desenhar mais uma página
da minha novela gráfica deliciosamente ilegal: "A Intrigante Arqueologia Perdida do Fantástico Mundo de Bob".
Pelo menos aqui, posso deixar de ser um cidadão. Posso ser apenas possibilidades desconexas, invisível
e livre. Amanhã cedo parto para as Bordas. E seja o que Bob quiser.

FIM?"



Este post está em construção...
depois eu termino de colocar as imagens. é hora de dormir...



Boa noite, sonhadores...

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