Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Pra terminar o assunto...

Eu já estou de saco cheio de ver mais um crime se transformando em circo da mídia no Brasil. Já estou de saco cheio de ouvir falar do assassinato da Eloá, do assassino que virou pobre homem apaixonado pra depois virar pobre psicopata, ou do pobre pai que virou malfeitor procurado. Acredito, por acreditar na inteligência de vocês, que também já estejam de saco cheio de tudo isso.

Então, pra encerrar o assunto e não voltar mais a ele, vou me calar (como talvez já devesse ter feito antes) e republicar dois textos que a Patinha me enviou falando sobre o tema sob uma ótica feminista. Se te interessa ler algo relativamente diferente daquilo que os jornais estão bombardeando sobre vocês, leiam os textos abaixo.

O primeiro foi publicado no Vi o Mundo do Azenha e no site da ADITAL, mas o ví originalmente no email passado pela Patinha.

Brasil - Feminicídio ao vivo: o que nos clama Eloá




Maria Dolores de Brito Mota e Maria da Penha Maia Fernandes *

Adital -

Tudo o que o Brasil acompanhou com pesar no drama de Eloá, em suas cem horas de suplício em cadeia nacional, não pode ser visto apenas como resultado de um ato desesperado de um rapaz desequilibrado por causa de uma intensa ou incontrolada paixão. É uma expressão perversa de um tipo de dominação masculina ainda fortemente cravada na cultura brasileira. No Brasil, foram os movimentos feministas que iniciaram nos anos de 1970, as denúncias, mobilização e enfrentamento da violência de gênero contra as mulheres que se materializava nos crimes cometidos por homens contra suas parceiras amorosas. Naquele período ainda estava em vigor o instituto da defesa da honra, e desenvolveram-se ações de movimentos feministas e democráticos pela punição aos assassinos de mulheres. A alegação da defesa da honra era então justificativa para muitos crimes contra mulheres, mas no contexto de reorganização social para a conquista da democracia no país e do surgimento de movimentos feministas, este tema vai emergir como questão pública, política, a ser enfrentada pela sociedade por ferir a cidadania e os direitos humanos das mulheres. O assassinato de Ângela Diniz, em dezembro de 1976, por seu namorado Doca Street, foi o acontecimento desencadeador de uma reação generalizada contra a absolvição do criminoso em primeira instância, sob alegação de que o crime foi uma reação pela defesa "honra". Na verdade, as circunstâncias mostravam um crime bárbaro motivado pela determinação da vítima em acabar com o relacionamento amoroso, e a inconformidade do assassino com este fim. Essa decisão da justiça revoltou parcelas significativas da sociedade cuja pressão levou a um novo julgamento em 1979 que condenou o assassino. Outro crime emblemático foi o assassinato de Eliane de Grammont pelo seu ex-marido Lindomar Castilho em março de 1981. Crimes que motivaram a campanha "quem ama não mata".

Agora, após três décadas, o Brasil assistiu ao vivo, testemunhando, o assassinato de uma adolescente de 15 anos por um ex-namorado inconformado com o fim do relacionamento. Um relacionamento que ele mesmo tomou a iniciativa de acabar por ciúmes, e que Eloá não quis reatar. O assassino, durante 100 horas manteve Eloá e uma amiga em cárcere privado, bateu na vitima, acusou, expôs, coagiu e por fim martirizou o seu corpo com um tiro na virilha, local de representação da identidade sexual, e na cabeça, local de representação da identidade individual. Um crime em que não apenas a vida de um corpo foi assassinada, mas o significado que carrega - o feminino. Um crime do patriarcado que se sustenta no controle do corpo, da vontade e da capacidade punitiva sobre as mulheres pelos homens. O feminicídio é um crime de ódio, realizado sempre com crueldade, como o "extremo de um continuum de terror anti-feminino", incluindo várias formas de violência como sofreu Eloá, xingamentos, desconfiança, acusações, agressões físicas, até alcançar o nível da morte pública. O que o seu assassino quis mostrar a todas/os nós? Que como homem tinha o controle do corpo de Eloá e que como homem lhe era superior? Ao perceber Eloá como sujeito autônomo, sentiu-se traído, no que atribuía a ela como mulher (a submissão ao seu desejo), e no que atribuía a si como homem (o poder sobre ela - base de sua virilidade). Assim o feminicídio é um crime de poder, é um crime político. Juridicamente é um crime hediondo, triplamente qualificado: motivo fútil, sem condições de defesa da vítima, premeditado.

Se antes esses crimes aconteciam nas alcovas, nos silêncios das madrugadas, estão agora acontecendo em espaços públicos, shoppings, estabelecimentos comerciais, e agora na mídia. Para Laura Segato [1] é necessário retirar os crimes contra mulheres da classificação de homicídios, nomeando-os de feminicídio e demarcar frente aos meios de comunicação esse universo dos crimes do patriarcado. Esse é o caminho para os estudos e as ações de denúncia e de enfrentamento para as formas de violência de gênero contra as mulheres.
Muita coisa já se avançou no Brasil na direção da garantia dos direitos humanos das mulheres e da equidade de gênero, como a criação das Delegacias de Apoio às Mulheres - DEAMs, que hoje somam 339 no país, o surgimento de 71 casas abrigo, além de inúmeros núcleos e centros de apoio que prestam atendimento e orientação às mulheres vítimas, realizando trabalho de denúncia e conscientização social para o combate e prevenção dessa violência, além de um trabalho de apoio psicológico e resgate pessoal das vítimas. Também ocorreram mudanças no Código Penal como a retirada do termo "mulher honesta" e a adoção da pena de prisão para agressores de mulheres, em substituição às cestas básicas. A criação da Lei 11.340, a Lei Maria da Penha, para o enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres.
Mas, ainda assim, as violências e o feminicídio continuam a acontecer. Vejamos o exemplo do Estado do Ceará: em 2007, 116 mulheres foram vítimas de assassinato no Ceará; em 2006, 135 casos foram registrados; em 2005, 118 mortes e em 2004, mais 105 casos [2]. As mulheres estão num caminho de construção de direitos e de autonomia, mas a instituição do patriarcado continua a persistir como forma de estruturação de sujeitos. É preciso que toda a sociedade se mobilize para desmontar os valores e as práticas que sustentam essa dominação masculina, transformando mentalidades, desmontando as estruturas profundas que persistem no imaginário social apesar das mudanças que já praticamos na realidade cotidiana. O comandante da ação policial de resgate de Eloá declarou que não atirou no agressor por se tratar de "um jovem em crise amorosa", num reconhecimento ao seu sofrer. E o sofrer de Eloá? Por que não foi compreendida empaticamente a sua angústia e sua vontade (e direito) de ser livremente feliz?
Notas:
[1] SEGATO, Rita Laura. Que és um feminicídio. Notas para um debate emergente. Serie Antropologia, N. 401. Brasília: UNB, 2006.
[2] Dados disponíveis em: http://www.patriciagalvao.org.br/apc-aa-patriciagalvao/home/noticias.shtml?x=1076


* Ma. Dolores: Socióloga, professora da Universidade Federal do Ceará / Maria da Penha: Inspiradora do nome da Lei Federal 11340/2006. Colaboradora de Honra da Coordenadoria de Políticas para Mulheres da Prefeitura de Mulheres

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O segundo foi provavelmente publicado pela AMB, mas não consegui encontrar o link. Novamente, o artigo chegou a mim através do email da Patinha. (Minha professora e melhor colaboradora no que se trata de questões de gênero e feminismo, além de ser minha querida companheira).

Eloá – A Morte Anunciada

Analba Brazão Teixeira

Secretária Executiva da AMB

Semana passada o Brasil acompanhou de perto o seqüestro que culminou com a morte de Eloá. Uma Adolescente de apenas 15 anos de idade, que morreu por que decidiu não reatar o namoro com Lindemberg.

A tragédia anunciada se transformou numa briga pela audiência da imprensa televisiva e escrita, em que em nenhum momento, ao longo da sensacionalista cobertura do "caso Eloá" a imprensa classificou como mais um caso de Violência contra as Mulheres, que estava preste a entrar na contagem dos homicídios sofridos por mulheres que resolvem não reatar os namoros, casamentos. Será que não se reconheceu como violência contra as mulheres, pelo fato dela só ter 15anos?

Lindenberg passou a ser o centro de atenção de todos e de todas e mais uma vez uma atitude extrema de machismo é levada para o plano da patologia. O ciúme, a posse e a honra ganham o nome de "amor" de decepção amorosa, em que Eloá de Vítima passa a ser quase tratada como algoz, na boca de análises de psicólogas colocadas no ar "Se ela tivesse aceitado dialogar, nada disso teria acontecido".

Pelo contrário, o algoz de Eloá e Naiara, a todo instante era enaltecido: Qual o perfil de Linderberg? Bom rapaz, trabalhador, amigo de todos, "era apenas um pouco ciumento". E se chegou a este extremo é porque possui alguma patologia, dizia outro psiquiatra. Como reconhecemos as características desta patologia que uma pessoa carrega para cometer um crime como esse? Pergunta feita por apresentadores de programas televisivas.

Patologia? Ou ele não agüentou "perder" o controle que queria ter da vida de Eloá? Ou sentiu a sua "honra maculada" por que Eloá,não queria continuar o namoro que ele próprio terminara?

O que acompanhamos foi estarrecedor e nos mostrou como ainda é tratada no Brasil a violência contra as mulheres. O que nós feministas chamamos de "posse" arraigada na cultura machista, a imprensa chama de decepção amorosa. O que se reconheceu foi "a legítima dor de amor dele por Eloá", numa tentativa forçada de transformar um seqüestro em novela, de proteger um criminoso que atentava contra a vida de uma mulher indefesa, de romantizar um crime. Resguardado por sua dor, Lindembergue foi capaz de torturá-la por horas a fio, de adiar um desfecho previsto e planejado para exaltar-se diante de seu sofrimento, contínuo, prolongado e, graças às tecnologias da comunicação ,teve público. Sim, a agonia da menina de 15 anos foi transmitida ao vivo,entrecortada por flashes e entrevistas pungentes de programas de auditório sensacionalistas. Os mesmos que enaltecem a carreira ascendente de ex-participantes de reality shows e celebridades com alcunha de fruta ou legume. Linderberg era a estrela do momento, dono total da situação em que duas vidas (Eloá e Naiara) corriam um risco real. E Linderberg perguntava: Qual é o canal de televisão que está me entrevistando? Este é realmente o papel da mídia, aconselhar o seqüestrador? Será que se Eloá fosse de uma família de Posses, o tratamento sensacionalista em que a vida dela estava em risco teriasido o mesmo? Questões para refletirmos diariamente.A mesma mídia, agora, faz outro tipo de sensacionalismo com a doação de órgãos, tentando transformar Eloá em Santa. Assim, desconsideram mais uma vez o absurdo de sua morte. E desconsideram que nós, mulheres, não queremos ser santas. Nós, mulheres, queremos viver. E viver com autonomia, com liberdade.

Acompanhamos,ao longo de toda a trama televisionada a uma sutil (e branda) retomada do velho e gasto argumento da 'violenta emoção'. Tão em voga nos anos 70. O mesmo que levou Doca Street a atirar no rosto de Angela Diniz. Sim, as dores de"amor" matam, ou melhor dizendo, a dor da rejeição da perda da posse, mata. E já o fizeram, por muito tempo, impunemente. Não foi à toa que o slogan'Quem ama não mata' ganhou cartazes e ruas há mais de duas décadas e continua tão presente nos nossos dias.

Tiro no rosto, tiro na virilha, que isso significa? Por que quase sempre essas são as partes do corpo escolhidos nos casos de homicídios nas relações afetivo-conjugal? Podemos pensar que no caso da rejeição e da perda do ser amado", os homens impulsionados pelas marcas de uma cultura sexista e patriarcal, tem que aniquilar as possibilidades de realizar o prazer e o desejo do outro.

Não podemos deixar de assinalar também o papel desastroso da polícia, que teve um empenho total na garantia da vida do assassinato. A polícia se condescendeu com o algoz e entregou à ele a vida das duas meninas. A todo tempo, o comandante da operação manifestava preocupação em que Linderbegue não estragasse sua vida, em detrimento das duas vidas das mulheres. Afinal de contas o bom moço não tinha antecedentes, era uma ótima pessoa e estava apenas sofrendo de uma decepção amorosa. Qual era a negociação de Linderbergue? A vida de Eloá.

Não é por acaso que o Brasil possui uma Lei que pune crimes de violência doméstica, que, aliás, traz o nome de uma mulher vítima desta mesma sorte de 'amor', sendo alvo de duas tentativas de assassinato cometidas pelo então marido. Uma história tristemente comum, que, talvez, se distinga apenas porque Maria da Penha, sim, conseguiu sobreviver.

Mas, muitas não tiveram e não tem a mesma sorte. Eloás, Vandas, Angelas, Rosângelas, Mirians, Reginas, Robertas, Marias.Morreram e morrem indefesas, dentro de suas próprias casas, agredidas, surradas e humilhadas por aqueles que, sob o pretexto do amor, disciplinam aqueles corpos sobre os quais acreditam ter direitos.

Isto acontece porque vivemos numa sociedade que ainda concebe que, se um homem alega amar uma mulher, ou se tiveram ou tem algum acerto de conjugalidade, isto lhe dá direitos sobre a vida dela.

Em nome de uma suposta 'honra' masculina, que, quando ameaçada, insurge ensandecida, a ponto de humilhar, ferir e matar aquela que decidiu romper e não reatar a relação.

Quem torceu pelo amor de Lindembergue, quem acreditou que ele pudesse sair daquele prédio de mãos dadas com a ex-namorada esqueceu ou reforçou o tipo de cultura em que vivemos.

Quem tratou aquele drama passional como se não tivéssemos, neste país, de forma gritante, e em todo planeta, uma numerosa estatística de crimes de honra ajudou a puxar o gatilho. Que conclusão podemos chegar? O Machismo Mata.


Pronto. Que Eloá descanse em paz, e que um dia o rumo dos ventos mude e as pessoas percebam que o buraco é sempre mais embaixo, e que um dia as mulheres não morram mais na mão de seus maridos, namorados, ou de desconhecidos que acham que é muito natural estuprá-las nas ruas...

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