Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Gonzo no Piauí

Felipe Obrer, velho de guerra dos tempos Overmundanos, deu a dica de que estão publicando pedaços preciosos da biografia de Ralph Steadman na revista Piauí.

O texto tá lá de graça...
eu comprei a edição impressa deste mês, mas lembrei de ti e te passo o
link http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=603
Eu, pelo menos, ri bastante.

Abraço!

Para quem não conhece, Steadman -- desenhista, cartunista e autor de ótimas tiradas ácidas com tempero suburbano galês -- foi durante 30 anos o fiel companheiro de Hunter S. Thompson, o cara sobre o qual criaram a estampa do "gonzo jornalismo". Hunter e Ralph fizeram realmente uma porrada de coisas surreais em suas vidas, e ainda escreveram (ou no caso de Ralph, desenharam) contando tudo para revistas como a Rolling Stone.

O texto é impagável. Vale a pena ler. Abaixo, um trecho

"(...) perguntei:

− O que acontece agora?

− Durante a primeira hora, nada − disse Hunter. −Depois, você pode se sentir meio esquisito.

− Tudo bem − falei. − Vamos lá tomar um drinque.

Comecei a me sentir esquisito. O irmão de Richard Nixon − pelo menos acho que era o irmão dele − estava encostado ao piano, com o corpo na diagonal; conversava com ar indiferente com uns outros caras de olhos vermelhos com pinta de iatistas, e não dava a menor bola para uns cachorros que rosnavam e também tinham olhos vermelhos – cachorros dos quais eu tentava me esquivar. As pessoas começavam a derreter e eu me sentia incrivelmente bem. Para onde quer que olhasse, eu via iatistas que, por mais parrudos que fossem, derretiam e sumiam no ar. Naquele momento, eu era o rei do pedaço. Hunter estava ali comigo, me vigiando. Me seguia feito uma babá.

− Acho que está na hora da gente voltar para o nosso barco. A gente precisa conversar − disse Hunter.

Embora de estilo meio desajeitado, Hunter era bom no manejo de remos e embicou um pequeno bote em direção ao nosso barco. A água batia mansa no casco e tudo estava sossegado. Na verdade, a baía inteira parecia sossegada. A lua brilhante penetrava no mar como cacos e os meus sentidos estavam num estado de alerta anormal. Fiquei muito ligado em detalhes de todas as superfícies que via. Passei a observar as cabeças dos pregos no casco do bote, que luziam ao luar. Peças de metal do barco brilhavam feito faróis, e os cabos náuticos reluziam como fios elétricos em chamas. Tocar em qualquer superfície me dava a sensação de mexer em pele de dinossauro. Quando olhei para o cais, imaginei estar vendo a face de um penhasco afundando no mar.

Não lembro quanto tempo essa sensação durou, mas aos poucos comecei a me dar conta de que eu tinha embarcado numa tremenda viagem, que nada tinha a ver com bebida. Eu sabia que a minha mente tinha sido seqüestrada e que eu estava nas mãos de uma fera assassina.

− Ralph. Ainda temos uma matéria para fazer − comentou Hunter.

− Então vamos fazê-la logo, agora, de uma vez. Estou aí para o que der e vier – respondi.

− O que der e vier?

− O que der e vier − respondi com entusiasmo.

− Bom... Você lembra que a gente andou pelo cais hoje à tarde, vendo o lugar onde os barcos ficam atracados, não é?

− Lembro, e daí? O que é que vamos fazer?

− Você! Ralph! O que você vai fazer?

− Eu? Mas sou só um artista!

− Mas você é cheio de idéias − Hunter me encarou de frente.

− E daí...? − Eu estava confuso.

Foi naquele momento que Hunter pegou duas latinhas de spray − uma preta e a outra vermelha.

− Comprei isto aqui enquanto esperava você lá em Nova York. Eu não sabia que íamos precisar disto, mas como até agora a gente não tem nenhuma idéia de reportagem...

− E daí? Para que são essas latinhas de tinta?

− O artista é você, Ralph. O que sugere?

− Algo pirado, numa parede! – sugeri.

− Tudo bem − respondeu Hunter. − Mas, o quê? Você é o ilustrador que veio da Inglaterra. Talvez alguma coisa sobre o IRA?

− Nem pensar! − retruquei. − Que tal uma pichação com os dizeres FODA-SE O PAPA na lateral de um dos iates?

− Caramba, Ralph! Você é católico?

− Nada a ver. Foi só algo que me veio à cabeça.

− Se você está mesmo falando sério, vamos lá. Garanto que posso remar este botezinho no meio dos píeres até chegarmos aos dois barcos da regata. O resto é por sua conta. De manhã, quando a tripulação levar o barco para a enseada, vão perceber o ato escroto de vandalismo e blasfêmia que você perpetrou. − Um sorriso sacana atravessou o seu rosto.

Conseguimos chegar ao local em que estavam atracados o Gretel II e o Intrepid. Uma corrente fechava o acesso entre os dois píeres e uma tabuleta avisava: “Não entre.” Hunter agia no maior silêncio e me sinalizou, com o dedo nos lábios, para também não fazer barulho. A lua era uma mera bola branca, mas os reflexos cintilantes nas ondulações do mar me pareciam estranhamente vermelhos. Um dos barcos estava na sombra lunar e Hunter dirigiu o bote em sua direção. Avançamos silenciosamente entre aquelas duas formidáveis máquinas que agora me pareciam canivetes flutuantes, iguais ao que Hunter tinha comprado à tarde.

− É agora ou nunca – ele me sussurrou.

Peguei a lata preta de spray, levantei na altura da minha cara e sacudi, como todo mundo faz, para misturar bem a tinta. Soou um chocalho tremendamente barulhento dentro da latinha.

Uma voz do alto do píer berrou:

− Ei! Quem está aí embaixo?

Hunter rosnou um palavrão e sussurrou, com voz abafada:

− Caralho! Essa não, Ralph! Fracassamos. Num minuto, isto aqui vai estar infestado de policiais. Temos de dar o fora!

Uma lanterna lá em cima nos localizou e uma voz gritou:

− O que estão fazendo aí embaixo? Essa área está isolada, não viram a tabuleta na corrente?

− A gente estava só dando uma olhada nos barcos − respondeu Hunter.

Em seguida, cochichou para mim:

− Temos de cair fora, Ralph. Isto aqui logo vai ficar infestado de policiais e cachorros farejadores. Temos de cair fora!

Hunter sacou uma pistola (...)"



E se quiser ler mais, vai lá:
http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=603&pag=1


Ilustração de Steadman para o famoso
livro de Hunter S. Thompson
(que acabou virando filme):
Fear and Loathing in Las Vegas

Um comentário:

Anônimo disse...

Parece bem legal. Vou procurar saber mais depois. Abraços.