Daniel Duende é escritor, brasiliense, e tradutor (talvez nesta ordem). Sofre de um grave vício em video-games do qual nunca quis se tratar, mas nas horas vagas de sobriedade tenta descobrir o que é ser um blogueiro. Outras de suas paixões são os jogos de interpretação e sua desorganizada coleção de quadrinhos. Vez por outra tira também umas fotografias, mas nunca gosta muito do resultado.

Duende é atualmente o Coordenador do Global Voices em Português, site responsável pela tradução do conteúdo do observatório blogosférico Global Voices Online, e vez por outra colabora com o Overmundo. Mantém atualmente dois blogues, o Novo Alriada Express e O Caderno do Cluracão, e alterna-se em gostar ora mais de um, ora mais de outro, mas ambos são filhos queridos. Tem também uma conta no flickr, um fotolog e uma gata branca que acredita que ele também seja um gato.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Já ouviu falar de Femicídio?

Mesmo incerto de que a palavra exista na norma culta portuguesa, não posso deixar de usá-la. Mas, mais importante do que isso é perceber a realidade para a qual a palavra é (apenas?) um sinalizador.

Segundo a wikipedia espanhola:

"El femicidio representa una escala de la violencia contra las mujeres. Está relacionado con el término genericidio creado por Mary Anne Warren en 1985 en su libro Gendercide: The Implications of Sex Selection aunque la traducción más aceptada, tras largo debate, ha sido la de "feminicidio".[1] Las mujeres entre los 15 y los 44 años tienen una mayor probabilidad de ser mutiladas o asesinadas de una forma u otra por hombres que de morir de cáncer, malaria, accidentes de tráfico o guerra combinados."

"O femicídio representa uma escala da violência contra as mulheres. Está relacionado com o termo genericídio, criado por Mary Anne Warren em 1985 em seu livro Gendercide: The Implications of Sex Selection, ainda que a tradução mais aceita para o mesmo, após longo debate, tenha sido 'Femicídio'. Mulheres de 15 a 44 anos tem mais possibilidade de sofrer mutilação ou assassinato de uma forma ou de outra na mão de homens do que de a soma das possibilidades de morrer de câncer, malária, acidentes de trânsito ou em decorrência de guerra."

Embora já estivesse atento ao tema, em grande parte por conta da atenção dada pela Patinha -- minha companheira -- a tais questões, o que me levou a perceber sua importância, este post foi motivado pela leitura de uma notícia publicada na área de assinantes do Correio Brasiliense (porém disponivel nesta comunidade do Orkut), que falava sobre os Femicidios na cidade mexicana de Juarez:

"Máfias de narcotraficantes e gangues como a Mara Salvatrucha adotam a execução de mulheres como marca registrada. Apenas na Guatemala, o número de assassinatos desse tipo chegou a 534 em 2007

Rosaura Montañez, de 53 anos, entrou no necrotério de Ciudad Juárez, no norte do México, com o coração apertado. Ela tinha visto a notícia na televisão, mas não acreditou. O corpo de sua filha mais velha, Esmeralda Martinéz Montañez, 19 anos, havia chegado ao local. A jovem desaparecera cinco dias antes. Um homem caminhou com Rosaura até um cadáver coberto com um lençol branco. Não a deixaram ver os restos mortais. Ela observou apenas os dedos do pé esquerdo. O marido, Santos Domingo, fez o reconhecimento e teve dúvidas de que aquela era mesmo Esmeralda. O rosto estava irreconhecível, havia marcas de estrangulamento e deformações causadas por golpes. “Por que fizeram isso com minha filha? Foi uma coisa horrorosa, terrível”, contou Rosaura ao Correio, por telefone. A noite de 4 julho de 1995 não foi esquecida. Treze anos se passaram e ninguém sabe ao certo o que ocorreu.

A história de Esmeralda se confunde com a de tantas outras mulheres na América Central e no México. Em Honduras, El Salvador e Guatemala, o número de casos de feminicídio sobe a cada ano. Antes de morrer, as mulheres são estupradas, torturadas e mutiladas. A maioria é vítima de gangues e máfias, especialmente do narcotráfico. A realidade das mulheres centro-americanas é dura. A Justiça falha, os crimes não são esclarecidos e os agressores continuam nas ruas. Em seis anos, quase 6 mil mulheres morreram assassinadas brutalmente apenas nos três países.

“A morte da mulher é como uma mensagem, feita com violência expressiva. Trata-se de um fenômeno novo no espaço público”, comenta a antropóloga argentina e professora da Universidade de Brasília Rita Segato. A principal característica desses crimes é a destruição do corpo da mulher. Cabeças são separadas do pescoço. Lábios e seios são arrancados. Há casos em que a mulher é encontrada com inscrições — triângulos, linhas, queimaduras — em determinadas áreas, que servem para identificar a gangue que cometeu o assassinato. “Alguns grupos chegam a arrancar os mamilos delas para usarem como troféu”, revela Rita. [...]"

Pesquisando um pouco mais sobre o tema, descobri que há até um verbete na wikipedia espanhola sobre o tema. Mais do que isso, há um relatório da Comissão InterAmericana para os Direitos Humanos tratando sobre estes assassinatos em Juarez, e há também alguns vídeos falando sobre o assunto, inclusive um deles feito pela associação local de mulheres "Nossas Filhas de Volta pra Casa", tentando sensibilizar os olhares mundiais para o tema:








Já seria terrível se o femicídio acontecesse apenas na assustada cidade mexicana de Juarez, ou que se limitasse à ação de "gangues", "narcotraficantes" e "serial killers", como a mídia tradicional parece querer que pensemos. Mas não é. O assassinato de mulheres motivado por questões de gênero (a condição da mulher ser mulher) acontece cotidianamente em todas as cidades do mundo, pobres ou ricas, desenvolvidas ou "em deselvolvimento". Não é coisa de bairro pobre ou de gente doente. Trata-se, mais do que tudo, de uma consequência óbvia das relações sociais e de imaginário construídas em nossa sociedade.

Se não vamos dizer que é uma consequência do machismo e do patriarcalismo, para fugir de termos fáceis, não podemos fugir do fato de que é uma decorrência da forma como nos enxergamos e nos imaginamos uns aos outros. Fora de qualquer tentativa de teorização ou elaboração, o femicídio acontece pois a mulher é fragilizada e o homem fortalecido, em uma sociedade de poderes desiguais e instituições candentemente hipócritas, onde a violência e o sexo ganham dimensões simbólicas e práticas nefastas. Matar mulheres é afirmação de poder, é satisfação de desejo de afirmação, é mensagem política, é reprodução prática de padrões simbólicos e, acima de tudo, é algo que pode ser feito com relativa impunidade em vários casos.

Posto isso, e olhando para o mundo ao nosso redor, é claro que o femicídio grassa em todos os lugares. Não há como evitá-lo sem que se olhe para algumas estruturas tão mais profundas e enraizadas em nossa sociedade e em nosso pensar. Coisa que muitas mulheres estão tentando fazer há muito tempo, e sendo tachadas de radicais, mal comidas e "femistas".

E ainda tem gente que nunca ouviu falar de femicídio. Devem achar que é coisa que só acontece na África, ou em algum "país pobre latino-americano" como o México. Quem somos nós para viver em tal ignorância, cara pálida?


P.S. Em tempo, além do Femicídio há quem fale em Feminicídio (genocídio de mulheres. logo, um ato político):

"Femicidio y feminicidio: Existe un gran debate en el movimiento de mujeres y feminista acerca de la manera de llamar a los asesinatos contra las mujeres en razón de su sexo. Algunos autores se basan en la terminología usada por Jill Radford y Diana Russell, autoras del libro Femicide: The Politics of Woman Killing, de 1992. Marcela Lagarde, teórica, antropóloga y diputada mexicana, establece que la categoría feminicidio es parte del bagaje teórico feminista introducido por estas autoras estadounidenses bajo la denominación femicide que, traducida a nuestro idioma es femicidio, término homólogo a homicidio, que sólo significa asesinato de mujeres. Sin embargo, para marcar una diferencia con ese término, Lagarde escogió la voz feminicidio para hablar de genocidio contra las mujeres, lo que lo convierte en un concepto de significación política. Fuente: Mujereshoy, Paola Dragnic."




P.P.S. Há também uma blogada interessante falando sobre o novo livro de Patricia Alvarado, chamado "Femicidio: Asesinadas Por Ser Mujeres". Abaixo, um trecho do livro citado na blogada:
" ...los femicidios se deben a una manifestación extrema de la violencia basada en la desigualdad entre mujeres y hombres. Cuando hablamos de femicidio estamos considerando que se trata de un problema social y no privado ni casual. Además estamos derribando los juicios equivocados, que tienden a culpar a las víctimas y a representar a los agresores como "locos", como "fuera de control" o a estos casos como "crímenes pasionales".La mayoría de las mujeres que menciona el estudio fueron asesinadas tras una larga historia de violencia, luego de terminar una relación de pareja, o en el proceso de separación, o después de haber sido atacada sexualmente."



P.P.P.S. Só para frisar que não traduzí as ultimas duas citações em espanhol porque creio que é parte de nossa obrigação, enquanto latino-americanos que somos, entender um mínimo da língua dos colonizadores do resto de nossa Latina América. Vamos lá, gente. Eu sei que vocês conseguem entender espanhol.

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